Ele era um dos brasileiros mais conhecidos no mundo. Mas, aqui dentro, em um Brasil acostumado a elevar ao Olimpo da fama jogadores de futebol, artistas ou celebridades que não duram mais do que algumas horas, poucos sabiam quem era Sergio Vieira de Mello.
Diplomata da Organização das Nações Unidas (ONU), o carioca formado em Filosofia pela Sorbonne, em Paris, construiu uma carreira internacional longe do Itamaraty, nos corredores de Genebra e de Nova York. Mas era no front, reconstruindo nações destruídas pelos homens, como Bangladesh, Camboja, Kosovo e Iraque, que ele ficava à vontade.
No Timor Leste, como chefe da ONU na recém-criada nação, ajudou a erguer das cinzas da guerra de independência um pequeno país com instituições sólidas e que fala português.
Morreu há 15 anos, em 19 de agosto de 2003, em um atentado contra a sede da ONU, poucos meses depois de chegar a Bagdá. Não fosse a fatalidade, o diplomata com 55 anos, no auge da carreira, provavelmente se tornaria o primeiro brasileiro a chegar ao posto de secretário-geral das Nações Unidas.
Contribuir para tornar o nome deste brasileiro mais conhecido é o objetivo do projeto Sergio Vieira de Mello - O Legado de um Herói Brasileiro, do produtor André Zavarize e do jornalista Wagner Sarmento. Durante cinco anos, eles viajaram por vários países onde o diplomata atuou, ouviram mais de cem pessoas para produzir o documentário e um livro.
— Sergio esteve envolvido nas principais guerras e problemas do mundo na segunda metade do século 20: da Guerra Fria, passando pela desintegração da ex-Iugoslávia, a crise na região dos grandes lagos na África, trabalhou em Lima. Eu precisei pesquisar não só a vida dele, mas esses locais, para saber como estava quando o Sergio chegou lá, o que ele fez e o que mudou com a atuação dele — explica Sarmento, com passagem pelo jornal do Commercio, de Recife, e atualmente produtor da TV Globo na capital pernambucana.
Em conversa com a coluna, o jornalista destaca que o livro não é uma biografia (há um outra, escrita pela repórter e ex-embaixadora americana na ONU Samantha Power, prêmio Pulitzer, chamado O Homem que Queria Salvar o Mundo: uma Biografia de Sergio Vieira de Mello, editado no Brasil pela Companhia das Letras). A obra agora lançada debruça-se sobre o legado, o retrato de como estão hoje regiões por onde Vieira de Mello passou. O prefácio do livro é de José Ramos-Horta, timorense Prêmio Nobel da Paz.
A primeira missão de Vieira de Mello foi em 1971 em Bangladesh, levando mantimentos para populações atingidas pela miséria. Depois, esteve à frente frente do Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados (Acnur). Certa vez, no Camboja, driblou a lenta burocracia da ONU para travar um diálogo com o Khmer Vermelho, um dos regimes mais genocidas da história recente.
— Contra tudo e contra todos, ele foi lá no meio da selva e se reuniu com membros do Khmer para falar da importância de um acordo de paz. Ele queria que as pessoas que viviam na parte da selva que ainda era dominada pelo Khmer pudessem entrar e sair. Muita gente na ONU demonstrava forte resistência porque diziam que não se deveria negociar com assassinos. Ele (Vieira de Mello) era meio porra louca nesse aspecto. Um cara muito vaidoso e que tinha esta certa dose de heroísmo. Foi o momento de maior loucura dele, e acabou dando certo, consegui repatriar mais de 370 mil cambojanos que estavam refugiados — diz Sarmento.
Tive a honra de entrevistar algumas vezes Vieira de Mello, enquanto ele estava no Timor Leste e em Kosovo. Prestes a embarcar para Bagdá, ele me disse:
— Estamos prontos para o pior — antevendo a catástrofe de refugiados em razão da invasão americana.
Foi uma de suas últimas entrevistas.
Em um momento de forte polarização da sociedade brasileira e de pouca tolerância, a obra e o legado de Vieira de Mello são antídotos para extremismos.
Assista ao trailer do documentário
"Poucas pessoas sabem quantas mil pessoas esse cara conseguiu tirar de zonas de conflito"
Na entrevista abaixo, o produtor André Zavarize fala sobre o projeto de reconstruir a imagem e o legado do diplomata.
Por que vocês escolheram lembrar a história de Sergio Vieira de Mello?
Tínhamos dois nomes, um era do Ayrton Senna e outro do Sergio Vieira de Mello. Sobre Senna, há uma memória muito viva, porque ele era esportista, o Brasil tem esse viés esportivo. O Sergio, diferentemente, poucas pessoas no Brasil o conhecem. O Brasil está precisando, neste momento dramático da nossa política, de nomes como o Sergio, um ótimo negociador, como José Ramos-Hora, Nobel da Paz, fala no documentário: "Ele era um diplomata, só que ele não tinha só o coração do diplomata, ele tinha esse outro lado pessoal". Sergio, dentro da ONU, era visto assim.
Como foi a pesquisa sobre o legado de Vieira de Mello?
Foram cinco anos de pesquisa, dois anos e meio a gente produziu, depois, fomos para a Ásia, África, Europa e América Latina. Entrevistamos mais de cem pessoas, do secretário-geral da ONU a dois prêmios Nobel da Paz, inúmeros chefes de Estado. Só que a gente não quis fazer um livro comercial como o da Samantha Power, uma coisa biográfica. Ela é Pulitzer, dispensa comentários. A gente quis contar sobre a obra que o Sergio deixou, que é muito mais bonita. Ele morreu naquele fatídico atentado da Al-Qaeda, mas a obra dele é muito grande. A obra dele está viva. As pessoas falavam que o problema do refugiado não é um problema brasileiro. Moro em São Paulo, que recebe refugiados de mais de 90 países. O problema é nosso, sim. A gente foi para Moçambique gravar o começo da vida do Sergio na ONU, a gente via que a baixada do Glicério, aqui em São Paulo, é igualzinha à África. É um problema nosso, sim. Para poucas pessoas que trabalham com refugiado aqui em São Paulo ele é uma referência. Isso é o legado dele. A gente queria fazer uma obra de brasileiros para brasileiros, de uma personalidade que ia agregar para a nossa sociedade. Começamos a bater no nome do Sergio. Aqui no Brasil ninguém liga para direitos humanos. As pessoas confundem, acham que os direitos humanos defendem bandidos, aquelas postagens doentias que a gente vê (nas redes sociais), o caso da Marielle (Marielle Franco, vereadora do Rio assassinada). A gente falou: "É hora mesmo do projeto, para entrar como remédio para nossa sociedade". Nossa sociedade precisa do Sergio.
Como foram as viagens?
Depois de dois anos e meio de pesquisa, a gente se aproximou das Forças Armadas, que tiveram muito contato com o Sergio. Ele foi fantástico com as Forças Armadas. O brasileiro sempre teve essa coisa boa do diálogo, como somos um país muito pacífico, as Forças Armadas, onde elas estiveram presentes, são referência, como foi a Minustah no Haiti, grande parte por força política do Sergio. O primeiro trabalho pesado que ele teve como referência foi em Moçambique. Fomos para África do Sul e Moçambique. Hoje, o principal problema em Moçambique é a questão da aids e a violência contra a mulher. A gente trouxe o Wagner Nascimento (autor do livro) para o projeto, um escritor para colocar o projeto de pé. Não estava procurando só um escritor, estava procurando alguém com um viés social. Como o secretário-geral da ONU falou no documentário: "A gente não queria só um diplomata que falasse português, a gente queria um diplomata que falasse português, mas que tivesse coração". Foi a mesma coisa quando a gente procurou (o autor). Um cara que conseguisse colocar emoção, sensibilidade.
O que encontraram na Ásia, no Timor Leste, como legado de Vieira de Mello?
O Timor Leste é o case de sucesso da ONU. O Sergio ficou três anos lá. Depois, o Camboja e o Vietnã. O Camboja foi uma das ditaduras militares mais sangrentas da história, e o Vietnã teve uma fuga em massa. Sergio conseguiu repatriar uma grande massa vietnamitas. Vimos que o maior índice de democracia em toda a Ásia é no Timor Leste, isso é fruto trabalho do Sergio. Ele é um cara que brigou por isso. Lá, a gente consegue ver o legado. Se você fechar os olhos, você vai se dar conta de quantas imagens do Iraque (vêm à mente), desde criança: Guerra Irã-Iraque, George Bush pai contra o Iraque, depois o segundo (George W. Bush). São milhares de imagens. Sergio ficou dois meses no Iraque. Poucas pessoas sabem onde é o Timor, poucas têm alguma imagem do Timor. A gente falou: "Vamos lá para dar voz a quem não teve voz". Nas praças, os jovens se reúnem à tarde, todo mundo conhece o Sergio. A gente foi na universidade que foi reconstruída graças ao Sergio. Não era prioridade da ONU, mas ele se sensibilizou e conseguiu uma doação para levantar a universidade. Só tinha dois professores. A Indonésia saiu, deixou arrasado o Timor Leste e todos os professores eram indonésios. Todo mundo saiu, ficaram dois. Tem uma placa lá na universidade em agradecimento ao Sergio porque, graças à doação da ONU, a universidade conseguiu reabrir as portas. Conversando com os formando em Medicina, Biologia, Direito, todos conhecem o Sergio. Poucas pessoas (no Brasil) sabem quantas mil pessoas esse cara conseguiu tirar da zona de conflito. O brasileiro precisa conhecer esse herói. O brasileiro precisa conhecer um pouco mais de um cara que há 48 anos atrás, quando entrou na ONU, já dava atenção para a questão dos refugiados.