Um dos principais especialistas brasileiros em migrações, o coordenador da cátedra Sergio Vieira de Mello da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Gustavo da Frota Simões, explica como o atual aumento da tensão na fronteira já era esperado, diante da resposta lenta do governo brasileiro ao problema e com a recente judicialização do tema.
Doutor em Ciências Sociais, Simões realizou uma pesquisa na qual traçou o perfil do migrante venezuelano que chega ao Brasil.
Nesta segunda-feira, ele conversou, direto de Boa vista, com a coluna sobre o recrudescimento do fluxo migratório e da violência registrada em Pacaraima no fim de semana.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como está a situação com o aumento da tensão na fronteira?
O escalonamento dessa onda xenofóbica era algo que, infelizmente, estava previsto. Há uma grande crise na resposta ao fluxo migratório venezuelano. Esse gerenciamento insuficiente tem causado uma série de questões. Algum tempo atrás, o governo do Estado emitiu um decreto inconstitucional pedindo, entre outras coisas, o fechamento de fronteiras. Um juiz da Vara Federal aqui de Roraima concedeu o fechamento, e não durou mais do que 17 horas até que a liminar fosse cassada pelo TRF. Com essas notícias circulando, aumentou muito a insegurança dos imigrantes. Se eram de 300 a 400 pessoas por dia cruzando a fronteira, esse número dobrou. Muitas dessas pessoas não conseguiram ter seus pedidos processados na região da fronteira. Há todo um aparato governamental, do Exército, do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), de organismos internacionais, para fazer esse processamento dos pedidos. Como não se conseguiu atender a todas essas pessoas, muitas acabaram ficando em moradias improvisadas, em situação de rua, em barracas ao redor da cidade e do centro de triagem em Pacaraima. Toda essa insegurança e o fechamento de fronteiras aumentou o fluxo migratório nas últimas semanas.
Temendo que a fronteira fosse fechada de forma permanente, os migrantes aceleraram a saída da Venezuela?
Exato. Essa é uma questão que as pessoas que são favoráveis ao fechamento de fronteiras têm de ter em mente. Muitas vezes os efeitos indesejados são o que acontece quando se tem uma política migratória muito mais restrita. Quanto mais restritas as políticas migratórias de um país, mais aumenta a irregularidade dos migrantes. Porque eles não vão deixar de vir. Eles vão continuar vindo, só que por vias irregulares. Foi criada uma situação muito indesejável na cidade de Pacaraima. Uma parte da população se reuniu, e o estopim foi o assalto a um comerciante conhecido na cidade. Ele foi espancado e teve de ser removido para Boa Vista. Isso gerou um sentimento negativo, tendo em vista que os suspeitos do crime seriam venezuelanos, segundo os relatos. Esse sentimento de xenofobia já estava ali colocado. Essa agressão foi simplesmente um pouco de gasolina para tocar fogo na situação que já estava montada principalmente em decorrência do aumento da população migrante em situação de rua e mais vulnerável em Pacaraima. Os sentimentos afloraram. No sábado, a população local invadiu essas barracas, colocou fogo nos pertences e expulsou as pessoas daquela localidade.
O envio da Força Nacional e a interiorização, medidas anunciadas pelo governo, são soluções que ajudam a amenizar a crise?
Parecem corretas as sinalizações. A primeira delas é o reforço da segurança, porque isso envolve uma população que não estava protegida. A partir do momento em que boa parte dessa população é solicitante de refúgio, é obrigação do governo brasileiro protegê-la. Muitas das pessoas atacadas voltaram para a Venezuela, migrantes que talvez estivessem em situação de perseguição política e com necessidade de proteção internacional. Cerca de 1,2mil pessoas voltaram.
Algo que inclusive viola o princípio internacional da não-devolução de um refugiado.
Claro. Isso gera uma responsabilidade internacional por parte do governo brasileiro. A questão da segurança me parece afetada nesse sentido. A outra questão sinalizada pelo governo federal é intensificar os esforços de interiorização. Até o momento você tem menos de mil imigrantes interiorizados. É um número muito pequeno. Não só intensificar quantitativamente, mas também ter uma gerência desse processo de forma qualitativa: fazendo parcerias com setor privado e por meio de plataformas como o Ministério do Trabalho, e casar as habilidades desses imigrantes com as necessidades do mercado de trabalho de outras regiões do país. Isso não tem sido feito. O processo de interiorização é um processo voluntário, vai quem quer, e os critérios não são até o momento claros. Não há um casamento entre as necessidades dos locais que vão receber esses imigrantes e as competências e habilidades que os migrantes tenham.
A sua pesquisa mostrou que, se houvesse emprego e a oportunidade de permanecer no Brasil, muitos venezuelanos aceitariam deixar Roraima.
Sim. Simplesmente retirar o imigrante que não está colocado no mercado de trabalho para outra região que talvez não ofereça oportunidade para se empregar seria transferir a responsabilidade de um Estado para outro.
A mudança econômica desta segunda-feira na Venezuela melhora ou piora a situação?
Boa parte das condições macroeconômicas e políticas da Venezuela continuam. Esse pacote de algumas modificações me parece, em um primeiro momento, que não ataca as principais razões da escassez de alimentos e outras questões que são as principais para o êxodo migratório. Continuo achando a situação na Venezuela extremamente precária do ponto de vista político, econômico e social. Ou seja, você continua com um governo restringindo direitos da população civil, perseguindo alguns indivíduos. Algum tempo atrás houve o suposto atentado (ao presidente Nicolás Maduro), e uma das primeiras medidas do governo foi editar regras mais restritivas e caçar os oposicionistas. A Venezuela tem projeção de chegar a uma inflação inédita de 1 milhão por cento. Do ponto de vista econômico, a recuperação do barril do petróleo não é a esperada. A principal commodity de exportação continua a preços não tão altos. E, socialmente, há uma escassez de itens de primeira necessidade, alimentos e medicamentos. Boa parte desses itens são importados pela Venezuela. As condições continuam as mesmas, com alguns agravantes, como foi o atentado a Maduro. A migração tem aumentado para o Brasil e para outros países da região.