Há várias dúvidas sobre o futuro da Venezuela após a reeleição de Nicolás Maduro, no último dia 20. Mas há ao menos uma certeza: o número de migrantes que deixam seu país falido em busca de trabalho deve aumentar. O epicentro da crise migratória no Brasil, a maior da história recente da América Latina, fica no Estado de Roraima, mais precisamente entre o município venezuelano de Santa Helena de Uairén a brasileira Pacaraima, onde centenas cruzam a fronteira a cada semana. Segundo a Polícia Federal (PF), cerca de 50 mil venezuelanos chegaram ao Brasil desde 2015.
O professor Gustavo da Frota Simões, coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Universidade Federal de Roraima (UFRR), dedicou-se em 2017 a compreender o perfil dos migrantes (leia a íntegra da pesquisa aqui). O resultado da pesquisa promovida pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), com o apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), chama atenção. A maioria tem entre 20 e 39 anos (72% do total) e apresenta alto índice de escolaridade – 28,4% têm Ensino Superior completo.
Doutor em Ciências Sociais, o carioca Simões trabalhou em Brasília antes de se mudar para Boa Vista, capital que fica a 200 quilômetros da fronteira.
– Falamos de xenofobia em relação aos migrantes venezuelanos, mas boa parte dos roraimenses são, na verdade, roraimados. Pessoas que vem de fora – contou.
Em entrevista à coluna, ele detalhou a pesquisa e avaliou o novo mandato de Maduro.
Chama atenção o perfil jovem e escolarizado do migrante. Isso surpreendeu vocês?
É uma migração majoritariamente jovem, formada por indivíduos em idade laboral. Cerca de 72% têm entre 20 e 39 anos, e uma predominância do sexo masculino e solteiros. É diferente de outros fenômenos migratórios mundo afora, em que há uma feminização da migração. Boa parcela chegou em 2017 e em 2018, é uma migração muito recente. Roraima, apesar de ser fronteiriço, não era um Estado com presença venezuelana grande até 2015. A migração tem como causa direta a crise econômico-social e política pela qual passa a Venezuela. Outro dado importante de destacar é a alta escolaridade dessas pessoas. Elas têm nível de escolaridade muito superior ao da média brasileira. É um perfil vantajoso em termos de inserção socio-laboral. São pessoas que podem contribuir muito, especialmente em Estados que têm carência de mão de obra, como é o caso da totalidade dos estados do Norte.
Esses migrantes, em geral, planejam deixar Roraima ou a maioria prefere permanecer?
Boa parcela tem interesse em deixar Roraima e se interiorizar para outros estados, se tivessem auxilio do governo federal. É interessante notar que ainda há uma parcela significativa dos que recusaram devido à proximidade da fronteira. Isso pode ser explicado porque, quando houver e se houver melhoria das condições na Venezuela, ficaria mais fácil para eles voltarem a seu país. Outra razão para permanecer em Roraima é que boa parcela tem laços afetivos do lado de lá. Isso facilita para o envio de itens de primeira necessidade, que estão faltando na Venezuela: alimentos, remédios. Eles trabalhariam por aqui e conseguiriam ir mais vezes à Venezuela levar esses itens que estão em falta ou que são cobrados preços absurdos, para itens como carne de frango, gêneros alimentícios, remédios básicos, de pressão, contra febre, antibióticos. A gente identificava, até 20 de maio (dia da eleição), muita esperança de que a situação pudesse melhorar. Com a reeleição de Maduro, acredito que haja um aumento na migração venezuelana de forma geral.
Como é o acesso da fronteira até Boa vista?
São aproximadamente 200 quilômetros, duas horas de carro. A estrada é muito boa. O acesso é fácil. Muitos ônibus saem de Pacaraima e vêm para Boa Vista, há também táxis-lotação. Houve aumento significativo das pessoas que cruzaram a fronteira e vêm a pé até Boa Vista. A cidade tem 10 abrigos públicos, e a expectativa é de que sejam abertos mais três. Boa parte dessa população está abrigada.
Como está a integração dessas pessoas? Há acolhimento ou o senhor identifica alguma xenofobia?
Temos alguns problemas, identifico boa parte como gargalos estruturais que o Brasil possui. Boa Vista é a menor capital do Brasil, população de 350 mil habitantes, a economia não é dinâmica como em outras cidades.Passamos por um momento de crise econômica, escassez de recursos, isso afeta o processos de integração. E os gargalos estruturais: principalmente a falta de uma política mais clara de revalidação de diplomas, para aproveitar a alta escolaridade dessas pessoas. Há dificuldade de acesso ao Ensino Superior para essas pessoas e para que possam ingressar em posições laborais condizentes com a escolaridade deles. A gente pode identificar os dois sentimentos: você tem uma sociedade civil que se organiza a partir de 2016, que tem acolhido bastante, com iniciativas como aulas de português, orientações sócio-laborais, que estão sendo desenvolvidas por grupos da universidade ou religiosos. Além disso, há algumas iniciativas não estruturais, mas que são muito importantes, como grupos que organizam sopões para o pessoal na rua, campanhas de distribuição de alimentos, agasalhos. Por outro lado, há uma parcela da população muito resistente à chegada dos migrantes. A gente pode entender essa xenofobia até pela condição que Roraima tem em termos de serviços públicos. Mesmo antes da chegada dos venezuelanos já tinha um sistema de saúde muito precário, que não conseguia atender à população local. O governo estadual e municipal incentivou muito esse discurso, são dois entes que têm sido muito antagônicos à presença dos migrantes. Mais recentemente, o governador pediu para fechar fronteiras, um ressarcimento de R$ 180 milhões pelos impactos que a migração trouxe, uma prefeitura que durante boa parte desse processo esteve muito ausente das discussões.
O senhor vai com frequência à fronteira?
A fronteira sempre foi um local de muita visita, é uma região onde há cachoeiras bonitas, muito turística. A população roraimense sempre frequentou aquela região. Antes da crise econômica na Venezuela, muita gente ia para a fronteira para comprar produtos venezuelanos, que você encontrava de melhor qualidade e às vezes mais barato do que em Boa Vista. Vou com frequência. Percebo que a situação está cada vez pior principalmente do lado venezuelano. Santa Helena é uma cidade bem interessante, arrumada, bacana de visitar, e está ficando vazia. Diversos comércios que antes operavam estão fechando. Há muita pobreza nas ruas, algo que não se via até quatro anos atrás. A população mais vulnerável está abrigada nos abrigos públicos. Será construído um centro de triagem, um hospital de campanha do Exército, um outro abrigo. Quero conhecer as novas estruturas, em junho, será a inauguração oficial. Em algum momento, devo voltar.