A falta de alguns produtos nas prateleiras dos supermercados e as longas filas em busca de combustível alimentam comentários comparando o atual momento brasileiro à situação de falência social, política e institucional da Venezuela chavista-madurista. Em tempos de opiniões apressadas e verborragia nas redes sociais, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém.
O Brasil não é a Venezuela. Primeiro porque nossos vizinhos estão em uma situação infinitas vezes pior. A economia deles encolheu 14% em 2017, mais do que em nações em guerra civil, e a inflação deve atingir 13.000% em 2018, 14 vezes superior a do Sudão do Sul, um dos países mais pobres do globo. Do lado de lá da fronteira, o desabastecimento não é coisa de oito dias. Comparar o Brasil com a Venezuela não apenas é demagogia como um insulto aos vizinhos, que emagrecem, involuntariamente, a uma média de 8,5 quilos por ano.
Vitaminado pelo fracassado do sistema de dois partidos e pela crise econômica, Hugo Chávez emergiu em 1998 com o discurso populista de salvar a nação e entregar o poder ao povo. Ao assumir o comando, no ano seguinte, mudou a Constituição para se perpetuar no poder, alterou até o fuso-horário da nação e, pouco a pouco, foi abocanhando as instituições do Estado — o parlamento, o Judiciário, a PDVSA e parte da imprensa, não sem certa permissividade da oposição que, ao se abster, acabou sendo cúmplice do regime. Oriundo das forças armadas, Chávez concentrou poder, construiu uma milícia particular do Estado (os coletivos), planejou se eternizar no Palácio de Miraflores, mas foi surpreendido pelo câncer.
Por aqui, ainda que grupos trabalhem nas redes sociais para a criar um ambiente político de instabilidade permanente, fragilização das instituições democráticas e deslegitimação do voto, a democracia (baseada no sistema de pesos e contrapesos) é mais robusta do que a de nossos vizinhos. O Brasil não tem uma sociedade profundamente dividida como a que vemos na Venezuela entre chavistas linha-dura e grupos de baixa renda que se beneficiaram de programas sociais, de um lado, e as classes média e alta que sustentam a oposição. Tampouco temos no poder uma ideologia de governo que completará um quarto de século, se Nicolás Maduro concluir o novo mandato em 2024.
No Brasil, ainda que com imperfeições, agentes políticos e jurídicos estão operando dentro das instituições para ampliar o alcance da lei, e não para diminuí-lo. Do outro lado da fronteira, a crise é alimentada por um regime que lança mão da ilegalidade para se manter no poder. E quando a Constituição barra, muda-se a mesma.
Cautela, sim, mas em alerta. Aqui, setores da direita reivindicam intervenção militar, enquanto parte da esquerda aposta no "quanto pior, melhor". Ambos acabam no "Fora Temer", em uma até pouco tempo improvável união de extremos por vias tortas. O Brasil não é a Venezuela. Mas não ser a Venezuela não significa que não possa se transformar na Venezuela.