Sempre que a história dos negros em Porto Alegre aparece na minha frente – e apareceu de novo com a ótima reportagem da Jéssica Rebeca Weber em GZH –, sinto raiva. A escravidão, claro, já faria qualquer pessoa com um pingo de humanidade sentir raiva, mas vou me ater aqui a um episódio mais recente.
Como se sabe, o Carnaval de rua, de blocos, de escolas de samba, começou em Porto Alegre onde hoje é a região central. Surgiu no Areal da Baronesa, na Ilhota, na Colônia Africana – territórios ocupados pelos negros após a abolição da escravatura que, atualmente, são bairros de classe média: Menino Deus, Cidade Baixa, Rio Branco etc. Com a Capital se urbanizando, entre os anos 1950 e 1960, a prefeitura decidiu mandar para longe essas comunidades.
Surgia, por exemplo, a Restinga – que ganhou esse nome porque aquela região, a 22 quilômetros do Centro, era a própria restinga: um pântano à beira do Arroio do Salso, sem saneamento, sem calçamento, sem transporte, sem nada. Em resumo, os negros que se virassem, era esse o raciocínio. E, ao mandá-los embora, obviamente, também mandaram embora o Carnaval.
Mas, pelo menos, a apresentação das escolas de samba ficou no Centro. Até 2003, a passarela era a Augusto de Carvalho, a Loureiro da Silva, a Borges de Medeiros, a João Pessoa – e qualquer porto-alegrense podia assistir à cultura da cidade desfilando a céu aberto. Um belo dia, no entanto, decidiram expulsar os desfiles também.
Pegaria muito mal, desta vez, dizer "eles que se virem", então a prefeitura prometeu uma boa estrutura para o novo sambódromo, nos confins da Zona Norte. As arquibancadas, por exemplo, seriam fixas – daria até para economizar dinheiro, já que, na região central, os assentos precisavam ser montados e desmontados todo ano. Dezoito anos depois, as arquibancadas ainda precisam ser montadas e desmontadas todo ano no Complexo Cultural do Porto Seco.
Também disseram, naquela época, que outros eventos tradicionais, como os desfiles de 7 de Setembro e da Semana Farroupilha, seriam igualmente transferidos para o Porto Seco – o que, como se sabe, se revelou uma balela: só o Carnaval acabou indo para lá. Não é repugnante? Não dá raiva isso?
Por que as escolas de samba não podem fazer duas noitezinhas de barulho no centro da cidade? É fácil responder: o motivo é o mesmo dos anos 1960, quando obrigaram essa mesma turma a morar longe da classe média. Mas os tempos vêm mudando, felizmente: os bloquinhos de Carnaval, antes da pandemia, estavam ocupando outra vez um espaço na região central que também é deles.
Porto Alegre, em 2022, vai completar 250 anos. Passou da hora de aprendermos a acolher, compartilhar e aceitar em vez de expulsar.