Do espinho ao asfalto
A Restinga nasceu, há 50 anos, como um loteamento para abrigar moradores desalojados de vilas pobres da área central de Porto Alegre. Cresceu, tornando-se um dos maiores bairros da Capital, constituindo uma espécie de cidade dentro da cidade
Como fazia todas as manhãs, Antônio Miguel de Almeida juntou os apetrechos de engraxar sapatos, o colocou na caixa de madeira e partiu da Vila Ilhota, no Bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, onde morava com a mãe, irmão, tios e primos, rumo à rua Lima e Silva. Era fevereiro de 1967 e ele tinha dez anos. Cinco décadas depois, a memória de Antônio mantém intactas as horas que se seguiram depois de mais um dia de trabalho lustrando os calçados dos comerciantes da região.
– Quando voltei, a nossa casa não estava mais lá, só a marca no terreno. Fiquei olhando, chorando e perguntando para os vizinhos se minha mãe tinha fugido e me deixado. Um senhor me pegou e disse: Não, a casa de vocês já foi para a Restinga. E a nossa vai amanhã, tu fica com nós. Amanhã, tu vai junto – recorda.
A partir daquele momento, Antônio passou a fazer parte da história que originou o primeiro núcleo de moradores da Capital construído à força, numa intervenção institucional promovida pelo regime militar e cujo lema era "Remover para Promover". Naquele ano, quase mil famílias foram retiradas de outras vilas da área central da cidade e levadas para a região inóspita que viria a se tornar o bairro Restinga, um dos maiores de Porto Alegre.
Enquanto seguia no caminhão com outros vizinhos em direção ao extremo sul, Antônio permanecia assombrado com a remoção inesperada da casa para o desconhecido.
– Lembro das ruas acabando na Hípica. Só tinha um corredor com mato para todos os lados. Não era lugar para morar. Na mudança com os meus vizinhos, tive vontade de me atirar do caminhão porque achei que estavam me roubando. Só me acalmei quando vi minha mãe e meus parentes numas cabanas improvisadas com restos de madeira. Ficamos dois dias dormindo embaixo delas, até reconstruírem a nossa casa. O chão era cheio de espinhos (rosetas) e a gente estava sempre com os pés machucados. Também tinha muito maricá. Olhava para todos os lados e não tinha água, luz. Não tinha nada. Só pensava "como é que nós vamos comer e beber aqui?".
Antes da mudança repentina, Antônio, a família e os vizinhos moravam na Vila Ilhota, comunidade formada por escravos foragidos ou libertos e ex-moradores do interior. Na época, a comunidade encravada na área central de Porto Alegre tinha duas ruas e dezenas de becos, em meio aos antigos arroios Dilúvio e Cascatinha. A partir de 12 de fevereiro de 1967, ela e as vilas Marítimos, Santa Luzia e Dona Teodora _ consideradas as mais pobres da Capital, na época _ deixariam de existir em menos de cinco anos. Sairiam das áreas alagadiças da zona central para as terras espinhentas de uma cidade em plena expansão imobiliária e territorial.
Funcionários do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), acompanhados de mais de 50 policiais militares, começaram naquela data a remover os moradores e as centenas de casebres de madeira para as glebas da Restinga, compradas pela prefeitura no ano anterior. Cada família teve direito a um terreno de 8x25 metros no "núcleo controlável", um dos nomes dados pelo governo para identificar o novo vilarejo erguido pelo regime militar. Foi a forma encontrada para formalizar o projeto Renascença, que abriria novas ruas, praças e avenidas, como a Erico Verissimo, em partes dos bairros Cidade Baixa e Menino Deus.
Política habitacional
Logo que chegou à Restinga, Antônio continuou trabalhando de engraxate até o fim da adolescência. Ainda menino, saía 4h30min de casa junto com a mãe, que era faxineira, para seguirem ao Centro na única carreta de transporte de trabalhadores - havia um horário de ida, antes das 6h, e outro de volta, 18h. Aos 21 anos, quase no final da década de 1970, já trabalhando como funcionário público do Dmae, conquistou a casa própria na quarta unidade da então Restinga Nova. Nos dias atuais, quando olha para o neto Arthur Oliveira Braga, três anos, da quarta geração da família a viver na Restinga, Antônio, hoje com 60 anos e aposentado, agradece a si próprio por não ter se jogado do caminhão que o levou ao novo bairro.
– No início, a gente foi tratado feito bicho "ó, vamos pegar aquele galinheiro, vamos colocar lá e pronto". Hoje, gosto da Restinga e não saio daqui – emociona-se.
As lembranças ainda capazes de levarem Antônio às lágrimas são confirmadas na pesquisa produzida pela professora aposentada e mestranda de História na Ufrgs Neila Prestes, 47 anos, moradora da Restinga desde 1972. Com base em depoimentos de moradores, reportagens e nos documentos oficiais da prefeitura da época, ela está resgatando uma parte da criação da Restinga desconhecida pela maioria dos gaúchos. Um trabalho ainda em construção.
– O começo do bairro é súbito, sem comunicar às pessoas para onde elas iriam. Era gente que morava na Ilhota e em outros territórios negros, que incharam muito do início do século até a década de 1960. No golpe de 1964, então, isso seria o que eles chamavam de massa perigosa que precisava ser controlada, de forma a não ficar na área central. Os planos e as políticas foram pautadas naquilo que os governantes identificavam como "vila de transição", "processo de confinamento" e "ressocialização". Na chegada a Restinga, os relatos são pobreza, de falta de trabalho devido à distância, de quebra de vínculo e de meios de subsistência – comenta a pesquisadora.
Doutora em planejamento urbano e regional, a professora de direito urbanístico da pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público Betânia de Moraes Alfonsin reforça que a tese da venda como modelo de política habitacional, era na verdade, uma espécie de "limpeza das áreas centrais".
– A fórmula usada na Restinga é de como não fazer política habitacional. O direito urbanístico no Brasil é o de acesso democrático à cidade e que não discrimine. O governo militar promoveu a segregação dos pobres, os esconderam bem longe – resume a professora.
Diretor do Demhab a partir de 1972, o hoje vereador Reginaldo Pujol (DEM) recorda que se questionava sobre o motivo das remoções para uma área tão distante.
– A ideia geral era de que estávamos fazendo um gueto, escondendo a população. Confesso que interroguei o doutor Telmo (prefeito da época) sobre isso e ele me deu uma explicação de estadista: "Nós compramos uma gleba inteira de terra e faremos infraestrutura para todas as casas porque serão destinadas para pobres mesmo e ninguém vai ter lucro com isso".
Pujol, porém, confessa ter usado o nome Restinga para "limpar" áreas da Capital previstas na expansão.
– Quando invadiam um terreno, com três ou quatro habitações, um funcionário nosso ia lá e dizia: "Olha, se vocês quiserem sair daqui, a gente arruma caminhão. Se não quiserem, nós vamos arrumar uma alternativa para vocês: umas casinhas que estamos fazendo lá na Restinga. Vocês querem ir?". Era um santo remédio! No outro dia, chegámos lá e não tinha mais ninguém. Não queriam ir" – revela o vereador.
Escuridão e mato
No mesmo período em que Antônio e a família foram levados ao novo território, Hélio Soares Fernandes, então com 30 anos, foi contratado pela prefeitura para remover as moradias da Ilhota. E tem na memória o primeiro dia, marcado também pela resistência de quem não pretendia deixar a vila da zona central:
– O primeiro dia de remoção foi 12 de fevereiro. Levamos 12 casas para a Restinga e três para terrenos particulares. Teve muita confusão, briga e tapas. Não queriam ir. Era um fundão mesmo, não tinha nada e era ruim. Ainda bem que havia brigadianos dando uma mão para nós. Colocamos tudo sobre os caminhões, umas casas inteiras e outras desmanchadas. Veio até bar.
Hélio também ergueu as primeiras cem casas de madeira que deveriam substituir as improvisadas. Elas tinhas duas peças num total de 2,75 x 5 metros, e era proibido aumentá-las. Para morar nas novas construções precisava-se desembolsar NCr$ 11 (R$ 120) mensais, durante 15 anos. O problema, porém, era que a maior parte dos moradores da Restinga vivia de funções informais – lavadeiras, engraxates e babás – e não tinham comprovação de renda. Para piorar, muitos perderam estes empregos depois da transferência para um lugar sem transporte.
– O Estado passou a dizer que as pessoas levadas para a Restinga, como tinham uma origem humilde e agrária, plantariam hortaliças e cultivariam galinhas. Mas esta realidade estava fora de contexto porque o terreno era pequeno e ainda tinha que dividí-lo com a patente e um poço de água, pois não havia água potável. O projeto também pretendia dar emprego nas obras de construção da Restinga Nova e houve quem seguisse este processo de transição, conseguindo adquirir a casa própria – explica Neila.
Medo e abnegação
Hélio foi um dos contemplados pelas casinhas recém construídas. Morador da Vila Santa Luzia, localizada entre as avenidas Bento Gonçalves e Oscar Pereira, em Porto Alegre, Hélio acabou sendo removido também para a Restinga em 21 de abril de 1967. No caminhão da mudança seguiram os pertences, partes restantes da velha casa, a mulher, Terezinha Fernandes, na época com 23 anos, e os filhos Renato, seis meses, Edson, um ano, Elizabeth, dois anos, e Sérgio, três anos. Terezinha relembra ter ficado apavorada com a situação de abandono da vila em formação. Para piorar a situação da família, o litro de queresone levado para abastecer o lampião se perdeu no caminho.
– Cheguei e, na mesma hora, quis voltar, apesar da casinha nova. Era uma escuridão e só mato. Fiz igual a uma galinha: abracei meus filhos, que estavam com medo e sentei num banquinho. Nos agarramos dentro de casa e nem suspirávamos. Chorei muito naquela noite. Queria ir embora, mas não tinha para onde voltar – revela Terezinha.
Com o tempo, a mulher passou a trabalhar como babá na própria casa para esquecer as condições precárias de moradia. Ao contrário dela, Hélio ficou satisfeito com a mudança de território. Nunca lhe faltou trabalho, pois atuou diretamente nos serviços terceirizados da prefeitura que ajudaram a estruturar a área, da montagem das casas à criação das redes elétricas. Mais tarde, virou serralheiro.
O casal jamais deixou o bairro. Juntos, foram ampliando o espaço onde hoje é a esquina das ruas Belize e Mississipi, duas das primeiras vias abertas na Restinga Velha, onde o bairro teve início. Com o tempo, esqueceram da área central de Porto Alegre. Terezinha não vai a outra parte da cidade há mais de cinco anos. Ela garante ter aprendido a amar a região onde vive. Criado no interior do Estado, Hélio acreditava encontrar tranquilidade na Restinga. Não imaginava, porém, a potência que ela se tornaria nos anos seguintes.
Conquistas a partir de lideranças
Mesmo com a continuidade das obras de estruturação da vila – entre elas, a abertura de ruas e avenidas dos dois lados da Estrada João Antônio da Silveira e a entrega das 1,2 mil casas da primeira unidade do que viria a ser Restinga Nova – no final da década de 1960 e início dos anos de 1970, ainda havia urgência nas instalações de saneamento básico, atendimento médico e equipamentos urbanos, como escolas, creches e postos de saúde. Sozinhos entre morros, figueiras, matos de maricás e ruas de terra, os moradores encontraram na própria união uma forma de enfrentar a apatia do poder público.
Em dezembro de 1974, um grupo de oito mulheres fundou um clube de mães na Rua Mississipi, na Restinga Velha, para tratar de questões relacionadas aos filhos, à falta de oportunidades de trabalho e às carências da vila. O convívio ajudou a forjar as primeiras lideranças comunitárias do bairro, entre elas, a auxiliar de nutrição Maria Clara Cardoso Nunes, hoje com 70 anos. Ela garante: não havia intenções políticas, apenas o desejo de ver o desenvolvimento da vila.
– Poucas pessoas conhecem o começo desta comunidade discriminada. Éramos considerados a lixeira social de Porto Alegre. Fomos jogados na Restinga, como quem diz: "A partir daqui, vocês se virem". Nós, então, partimos para a luta de um pouquinho de bem-estar – descreve Maria Clara.
A vila vislumbrou melhorias pontuais nas vozes das mulheres da Restinga Velha. Juntas, conquistaram as construções do primeiro posto de saúde da Restinga, que segue na Rua Abolição, da delegacia e da igreja católica, além da ampliação da escola estadual José do Patrocínio e do batalhão da polícia militar. No mesmo ano de fundação do clube, ao lado de outros moradores, entre eles, o marido de Maria Clara, Enio Messias, atualmente com 76 anos, fundaram a Unidos da Tinga, a escola de samba que três anos depois deu origem a uma das agremiações mais premiadas da Capital, a Estado Maior da Restinga. A intenção era oportunizar lazer à comunidade.
– Como estava muito distante, a Restinga começou a se autogerir numa organização própria e de cobrança de promessas. De uma certa forma, os serviços chegaram pela luta das lideranças. Isso foi fundamental – identifica a professora de história aposentada Neila Prestes.
Hortêncio virou nome de rua
Na vila, que não parou de receber remoções nos primeiros 15 anos, era comum proprietários de terrenos nos arredores da Restinga venderem lotes para quem quissesse se aventurar na região. Desta forma, novas comunidades começaram a se formar. Entre elas, a vila Chácara do Banco, que ganhou notoriedade a partir da liderança do pedreiro Hortêncio Machado de Lima. Natural de Tupanciretã, ele e a família moraram na Vila Augusta, em Viamão, e no bairro Glória, em Porto Alegre, antes de desbravarem o novo loteamento clandestino.
Ao lado da mulher, Eva Rosa de Lima, e dos 11 filhos, Hortêncio organizava os cortes da floresta de maricás e a abertura das ruas e das valetas de esgoto em frente às modestas moradias. Fotos guardadas pela família, ainda moradora de diferentes vilas da Restinga, eternizam os grandes mutirões que atravessavam a noite trabalhando conjuntamente. Indignado com a falta de água potável, Hortêncio também abriu no próprio terreno o primeiro poço artesiano da região, responsável por abastecer a vila e toda a redondeza.
Filas se formavam em frente ao buraco durante 24 horas, e o líder não se negava a ajudar quem necessitasse. O reservatório já não funciona mais desde a canalização de água, mas Eva, 84 anos, o mantém intacto, em memória ao marido. Vítima de enfizema pulmonar, ele morreu em 2000, aos 78 anos, e virou nome da antiga rua B, onde morou até a morte.
– Meu pai foi um lutador e um sonhador. Nunca deixou de acreditar que, um dia, nos tornaríamos um bairro forte da cidade. Mas morreu ser ter conquistado o direito à casa própria. Até hoje, apesar de termos comprado os nossos lotes, seguimos discutindo a questão na Justiça com um descendente do antigo proprietário dos hectares – conta a filha de Hortêncio, Almerinda de Lima, 54 anos, atual presidente da Associação de Moradores da Chácara do Banco.
Orgulho da luta
Os próprios moradores do bairro formado por famílias com rendimento médio dos responsáveis por domicílio de 2,10 salários mínimos – a média de rendimento atual em Porto Alegre é de 5,29 – segundo o IBGE, também fundaram organizações não-governamentais (Ongs) e entidades beneficentes destinadas a atender os mais necessitados dentro da própria Restinga. Há mais de 15 instituições, algumas vinculadas a igrejas, voltadas ao assistencialismo.
Entre as mais recentes conquistas do bairro está o Hospital Geral da Restinga, promessa do governo desde 1972. Inaugurada em 2014, na região limite com o bairro Pitinga, a instituição mantida pela Associação Hospitalar Moinhos de Vento ainda está em processo de expansão da oferta de atendimentos.
Para Neila, por ter sido constituída às pressas e sem apoio dos órgãos governamentais, a Restinga ganhou uma característica incomum em outras partes da cidade: a união por melhorias.
– A Restinga tem esta peculiaridade de se unir no momento que tem um problema e precisa ser solucionado. Politicamente, os moradores se unem em torno de um problema, lutam e conquistam. Infelizmente, depois da conquista, dão uma certa relaxada. Mas, quando é necessário, eles vão para a rua. Seguem unidos – destaca a doutoranda.
A autogestão do bairro, segundo Neila, também passa pela preocupação com a distância do ensino superior. Ela é um exemplo dos que precisaram deixar a Restinga temporariamente para seguirem na universidade. Preocupados com a falta de perspectivas de evolução no ensino, um grupo composto por moradores, movimentos sociais e organizações não-governamentais formou em 2006 uma comissão pró-implantação da escola técnica federal no bairro. A mobilização da comunidade pela construção da escola coincidiu com um contexto nacional de valorização da formação profissional. Em 2010, o campus Restinga do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) iniciou as atividades em sede provisória alugada, oferecendo 220 vagas nos cursos técnicos em administração, informática para internet e guia de turismo, subsequentes ao ensino médio. Atualmente, no campus definitivo, o IFRS Restinga oferece 14 cursos técnicos e superiores.
– Nós temos uma instituição federal que foi a única do Brasil criada a partir da reivindicação de uma comunidade. Em meio a tantos problemas, como a violência, nós temos do que nos orgulharmos – emociona-se Neila.
Para a professora de direito urbanístico Betânia de Moraes Alfonsin, doutora em planejamento urbano e regional, a população da Restinga conseguiu criar uma identidade forte movida pelos próprios desafios impostos pelo poder público:
– Quer melhor exemplo do que o grito da Estado Maior da Restinga: "Tinga teu povo te ama!"? Fico até comovida porque tem a ver com a história de resistência desta população.
Explosão
Maria Clara, que no início forçou-se a ser liderança comunitária, estufa o peito quando fala do bairro. Apesar do glaucoma impedí-la de ver com clareza o crescimento da Restinga, a ex-líder comunitária faz questão de seguir visitando a obra que identifica como "a menina dos olhos": a escola de educação infantil Arco-Íris, na Rua Tobago, a primeira creche construída no bairro a partir de uma reivindicação do clube de mães e que deu origem à pioneira das associações de moradores do bairro: Associação Comunitária e Beneficente Restinga Velha, criada para manter a escola.
– A creche Arco-Íris é como uma filha, eu pari e criei bem. Ela é a resposta de que ir à luta valeu a pena! – fala, com a voz embargada.
Fundada em 1982 para atender 40 crianças, a entidade começou gerenciada pelas mulheres. Maria Clara era a responsável por ir de porta em porta pedindo ajuda para manter aberta a creche. Os alimentos preparados nas refeições vinham de doações dos pequenos comerciantes da região. A líder foi a coordenadora-geral da escola entre 1982 e 1996, quando passou o cargo a César Augusto de Castro. Há quatro anos, desde a morte de César, é Neuza de Castro, 59 anos, mulher do ex-coordenador, quem está à frente da direção. Exemplo de escola comunitária na região, a Arco-Íris atende atualmente 120 crianças. Quase quatro décadas depois, mesmo com apoio da administração municipal, a comunidade segue contribuindo na manutenção da escola.
Há alguns anos, Maria Clara e o marido decidiram se dividir entra moradia na Restinga e uma casa no Litoral Norte. Todas as semanas, porém, o casal retorna à Rua Casablanca na casa que está sob os cuidados dos netos e ainda dá uma passada também num dos novos condomínios instalados na Vila Barro Vermelho, onde vive um dos filhos.
– Estamos criando bairros dentro de outro bairro. A Restinga não cresceu, ela explodiu. É uma terra para todos – finaliza.
Um bairro que nunca parou de crescer
Em maio de 1967, a então repórter do jornal Zero Hora Tânia Jamardo Faillace e o fotógrafo Reinaldo Soares percorreram as vielas que se formavam em torno da primeira gleba do que, nas décadas seguintes, se tornaria o bairro Restinga. Nas duas páginas intituladas Restinga, uma "Vila" ao abandono, Tânia relatou o isolamento forçado dos moradores e descreveu o cenário: "A Restinga não tem coisa alguma. Isto é, tem gente. E malocas. Favela da Ilhota, que na solidão da Restinga tornou-se cinco vezes favela". Depois daquela publicação, Tania, que se tornou escritora e artista plástica, jamais voltou à região. No início deste mês, porém, à convite da reportagem, ela aceitou percorrer as ruas do agora bairro. Aos 78 anos, ela mudou a percepção:
– Lembro de chegar e ver o pessoal, inclusive, tentando juntar duas tábuas para se abrigar sob elas. Hoje, este lugar mais parece uma cidade da Grande Porto Alegre do que outros bairros da Capital.
E Tânia não deixa de ter razão. Nos primeiros anos, cerca de 1 mil famílias foram deixadas na região. Dez anos depois, a população já havia sido ampliada em mais de cinco vezes. A construção das quatro unidades habitacionais, entre 1971 e 1981 aumentou ainda mais a população. Pelos dados do Censo 2010 do IBGE, o número de habitantes do bairro Restinga correspondia a 4% do total de Porto Alegre. A prefeitura não disponibiliza uma atualização. Em 2013, porém, as seis unidades de saúde da Restinga atendiam 110 mil moradores com endereços cadastrados. Há, ainda, pelo menos dez ocupações com cerca de 10 mil pessoas em moradias irregulares. Ou seja, uma cidade dentro da própria cidade.
Na visita, a ex-repórter fez questão de conhecer o trabalho de distribuição de roupas a famílias carentes, desenvolvido na Associação de Moradores da Vila Chácara do Banco. Foi uma volta ao passado. Quando esteve na Restinga pela primeira e única vez, Tânia conversou com moradores de um mutirão de ajuda entre vizinhos. Meio século depois, ela constatou que a solidariedade permanece entre os que vivem no bairro. Entusiasmada, pediu para auxiliar na separação das doações por alguns minutos.
– Foi uma experiência enriquecedora. Gostei de voltar e ver que a Restinga se desenvolveu, apesar das dificuldades iniciais – resumiu.
Avanço
Um dos primeiros a chegar com a família à então vila Restinga, no início de 1968, Mozart Santos, hoje com 63 anos, não imaginava que ajudaria a erguer o bairro onde ainda vive, entre idas e vindas. Aos 15, fez parte da equipe que saciava a sede dos construtores da nova Restinga, do outro lado da Estrada João Antônio da Silveira, pois o abastecimento ainda era escasso na região.
– Passava o dia carregando baldes de água para eles. Depois, me tornei operador de trator e ajudei a abrir as primeiras ruas da Nova, como a Avenida Nilo Wullf, uma das principais do bairro. Tem que ter orgulho de ser daqui, um lugar que começou do nada – afirma.
As marcas do avanço são vistas ao longo dos quatro quilômetros da Estrada João Antônio da Silveira, que no imaginário dos moradores continua sendo a linha divisória entre Restinga Velha e Nova. Nela foram construídas as grandes obras do bairro, como a praça Esplanada, o Camelódromo, o Fórum, a 16ª delegacia de polícia, a sede da Estado Maior da Restinga, o projeto social Casa da Sopa, a entrada do Distrito Industrial e o hospital Restinga e Extremo-Sul.
De tão longo em extensão, o bairro ainda tem áreas rurais que em nada lembram a parte mais pulsante. Sandra Maria da Luz, 62 anos, moradora da Chácara do Banco há 35 anos, comemora a tranquilidade ainda existente na Rua Dona Mariana, via que termina no começo do Morro São Pedro.
– Compramos um pedaço de terra onde ninguém queria morar. Hoje, todos querem este canto. Nem lembro qual foi a última vez que precisei ir ao Centro da cidade. Tudo o que preciso tem aqui, inclusive a tranquilidade – destaca.
Explosão
A partir da inclusão da vila numa área ainda desabitada da cidade vieram a água, o tratamento de esgoto, o asfalto e as linhas de ônibus e a especulação imobiliária.
– Inchou demais e virou bagunça. Hoje, numa comparação simples, (o bairro) ficou igual ao Rio de Janeiro: tem Copacabana, Leblon, uma ilha da fantasia, mas no entorno tudo é uma precariedade – resume o vereador Reginaldo Pujol, diretor do Demhab no período das implantações das quatro unidades habitacionais da Vila Restinga Nova.
Ex-líder comunitária da parte mais antiga do bairro, Maria Clara Nunes, 70 anos, ainda se espanta com o que identifica como a explosão da Restinga. Na visão dela e de outros moradores, o crescimento ininterrupto trouxe também consequências negativas como confirma o Raio X da Violência, levantamento realizado desde 2011 pelo Diário Gaúcho: só neste ano, o bairro registrou 37 homicídios até 20 de outubro. Em 2016, foram 38 homicídios e um latrocínio na região, deixando a Restinga entre as áreas mais violentas da Capital. Segundo o comandante do 21º BPM, responsável pelo bairro, tenente-coronel Márcio Galdino, a vulnerabilidade social da região tem influência direta na situação.
– A maioria das mortes tem vínculo direto com o tráfico de drogas, nosso principal alvo diário de combate. A solução foi abrir as nossas portas para a comunidade, e isso tem ajudado a diminuir índices de violência na região. Hoje, na Restinga, temos uma polícia comunitária e uma comunidade policial – afirma o comandante, sem revelar números.
Uma das iniciativas da BM local foi convidar as escolas para conhecer o Batalhão, o primeiro a ser descentralizado na cidade, ainda na década de 1980. Os três prédios do comando foram construídos com doações da própria comunidade.
O caminho
Maria Clara foi uma das lideranças a coordenar a criação de um batalhão no bairro. Na época, percebendo o acelerado crescimento da região, ela já temia o descontrole futuro.
– Onde hoje temos prédios, lembro de há alguns anos andar colhendo marcela. O progresso chegou sem pedir licença. Todo o lugar que cresce, acaba tendo conflito. Tu mistura o bem e o mal. A gente precisa recuperar o bem e educar o mal – identifica.
Foi o que fez a Escola Municipal Municipal de Ensino Fundamental Senador Alberto Pasqualini, localizada entre a 3ª e a 4ª unidades, para evitar a sequência de arrombamentos e furtos no prédio. Um homicídio, registrado durante uma festa junina, levou ao cancelamento do evento na escola nos últimos seis anos. Para combater a violência, a instituição escolheu incentivar a participação da comunidade escolar nos eventos e projetos internos. Entre as propostas ofertadas aos 1,3 mil alunos estão os projetos Voe Lendo (forma contadores de histórias), Meninas Crespas (sobre identidade), Escola de Circo, Animatinga (sobre animes), Afro Tinga (sobre cultura afro), Sábado Brincante (recupere as brincadeiras antigas), Clube de Leitura para mães de alunos e a Escola Preparatória de Dança (EPD), iniciativa desenvolvida pela prefeitura dentro de escolas da Capital e que tem 90 crianças e adolescentes de diferentes escolas do bairro, distribuídas em danças populares, balé, jazz, sapateado e danças contemporâneas.
– Com muita luta estamos levando cultura à comunidade e tentando reverter uma situação que quase levou ao fechamento da escola, anos atrás – comemora a coordenadora cultural da instituição, Ana Maria Araújo, professora na Pasqualini há quase duas décadas.
Única unidade da EPD fora da Zona Norte de Porto Alegre, a escola funciona numa sala da Pasqualini. As aulas ocorrem cinco dias. Cada curso tem duração de cinco anos. A formatura da primeira turma está prevista para 2019, mas já começa a dar resultados. No Sul em Dança deste ano, realizado no Centro de Eventos Fiergs, por exemplo, eles deram uma lição de superação. Sem calçados para os 60 integrantes, a equipe dançou descalça.
Há alunos da EPD, inclusive, frequentando academias e escolas de dança renomadas na Capital que ofertaram bolsas de estudos aos mais destacados.
Estudante do 8º ano da Pasqualini, Bruno Ferreira, 15 anos, é o maior exemplo de que a iniciativa dos professores da Pasqualini pode auxiliar no futuro do próprio bairro. Até o começo da adolescência, Bruno era considerado um dos exemplos negativos em sala de aula. A mudança veio com o apoio dos mestres e a participação na EPD.
– Não pude desfrutar da minha infância, e acabei isolado e desvirtuado. A escola me resgatou, pois acreditou em mim. Hoje, não gosto de prejudicar ninguém. No futuro, quero ser um dançarino profissional e ensinar minha dança a outras crianças do bairro onde me criei – garante, convicto.
O futuro da Tinga
Entre os desejos dos integrantes do núcleo Restinga da Escola Preparatória de Dança (EPD) está o de levar a própria arte a mais moradores do bairro, conhecido pela carência de oferta de atividades esportivas e culturais. Apesar de já terem percorrido diferentes partes do Estado, os jovens jamais conseguiram se apresentar para familiares e amigos. Na única chance que tiveram, à convite da reportagem no início do mês passado, eles improvisaram um palco na praça Esplanada. Divididos em dois grupos, representaram o bem vencendo o mal na coreografia Luz e Escuridão, do professor Ítalo Ramos.
– Tremi como se fosse a primeira vez. Estar diante da nossa comunidade foi um desafio e, ao mesmo tempo, um estímulo para continuarmos dançando – confidenciou a estudante do 7º ano Marielly da Cruz, 13 anos, na EPD há três anos e aluna de jazz numa escola de dança da Capital.
Se hoje o palco principal das apresentações é a avenida principal do bairro, a partir do segundo semestre de 2018 uma obra do Ministério da Cultura promete alentar os artistas locais e incluir a região no mapa cultural de Porto Alegre. Erguidos em 3 mil metros quadrados de terras que já foram um lixão na Vila Barro Vermelho, os três prédios multiuso do Centro de Artes e Esportes Unificados (Ceu) abrigarão, entre outras propostas, o primeiro cineteatro com auditório do bairro. O projeto, orçado em R$ 2,3 milhões, é vinculado ao Ministério da Cultura e contemplará também telecentro, pista de skate, quadra poliesportiva e biblioteca. A obra voltou a ganhar fôlego no mês passado, depois de quase dois anos paralisada, e tem promessa de conclusão em abril de 2018.
Entusiasta da juventude da região, o vigilante e líder comunitário José Luiz Ventura, 60 anos, faz questão de acompanhar diariamente o andamento da obra. Ele representa o bairro na gestão compartilhada entre governo e comunidade. Seu Ventura, como é conhecido, desenvolve há 15 anos um projeto social na área de atletismo com crianças e adolescentes do bairro Restinga. Foi ele quem limpou o terreno transformado em área de descarte e o transformou numa improvisada pista de corrida, antes do espaço ser escolhido para a construção do Ceu.
– Sempre acreditei que promovendo o esporte e a cultura estaremos ajudando a combater a violência. Quando este prédio estiver concluído, tenho a certeza de que ele será uma das portas para um bom futuro do nosso bairro. No lugar do inferno, daremos o CEU à comunidade – comemora, em trocadilho, o vigilante.
Enquanto os prédios multiuso são erguidos, o bairro voltou a contar com o Centro Cultural Multimeios Restinga, o antigo Estúdio Multimeios, no Distrito Industrial. O espaço estava fechado há dois anos. Com o apoio financeiro do comércio local, os antigos estúdios de áudio e vídeo e o palco externo foram reformados para a comunidade. O prédio ainda tem uma sala de informática com dez computadores e acesso à internet, biblioteca e espaço para exposições. Reaberto no final do mês passado, ele está sob a administração da Secretaria da Cultura.
Nem o fechamento temporário do Multimeios fez o roteirista de quadrinhos, cineasta e morador do bairro Luciano Moucks, 42 anos, desistir de investir sozinho na ideia de levar a Restinga às telas da televisão. Ele é o criador do Super-Tinga, personagem da primeira série rodada no bairro e que passará em mais de 200 canais públicos, em diferentes países de língua portuguesa. Ao contrário de outros heróis, Super-Tinga escolheu seguir na periferia onde nasceu e tem como superpoderes a fé, a escolha de dar uma segunda chance a todas as pessoas e o resgate da autoestima dos cidadãos. Uma estátua dele, com 3m de altura, foi esculpida em concreto numa das extremidades da praça da Esplanada. Ela fez parte das gravações e foi doada à comunidade.
– Chega de notícias negativas. No futuro, a Restinga também será conhecida pelas histórias positivas – garante Luciano.
Vozes unidas
Atenta ao futuro do bairro, a historiadora Neila Prestes participou da fundação da Associação dos Amigos da Cultura, Esporte e Lazer (Accel), uma entidade que pretende formar as novas lideranças comunitárias da Restinga para pensarem a produção de conhecimento e os projetos culturais para a comunidade. Em outubro, por exemplo, o grupo organizou o mosaico Restinga - 50 anos, na Casa de Cultura Mario Quintana, para apresentar os grupos culturais de música, dança, teatro e fotografia existentes no bairro.
Em julho deste ano, também em homenagem aos 50 anos, a entidade promoveu rodas de debates no campus Restinga do IFRS/campus Tinga e fez cursos rápidos sobre liderança, mais de 250 pessoas participaram.
– O que ocorreu em 1967, com gente chegando aqui à espera de uma oportunidade, continua até hoje. Seguimos como periferia. A gente precisa é abraçar esta situação e discutir a questão da adolescência, da violência e das drogas. Apesar de ser distante e de ter dificuldades com os processos do Estado, a Restinga tem professores, instituições e serviços que podem ser chamados a realmente atender a comunidade, discutindo a prevenção. Temos capacidade de desenvolvermos uma indústria criativa e produtiva no próprio bairro. O que a gente precisa é unir as vozes – finaliza, confiante, Neila.