Poucas coisas são tão inimagináveis em um regime democrático como alguém pedindo autorização na prefeitura para protestar. Era só o que faltava, um prefeito – que tem lado, tem partido, tem opositores e tem aliados – decidindo sobre como, onde e quando pode funcionar uma manifestação. Essa Lei Antivandalismo sancionada por Nelson Marchezan faz exatamente isso.
E já quero adiantar que também me irrito com manifestações que bloqueiam o trânsito. São anacrônicas, insolentes e especialmente antipáticas – tanto é que, da década de 1990 para cá, elas perdem apoio popular ano após ano. Mas o prefeito quer multar em até R$ 400 mil quem ousar "embaraçar ou impedir, por qualquer meio, o livre trânsito de pedestres ou veículos nos logradouros públicos".
O curioso é que o mesmo Marchezan, em 13 de março de 2016, não só participou como discursou em uma manifestação que bloqueou totalmente a Avenida Goethe exigindo o impeachment de Dilma Rousseff. Foi um protesto bonito, sem dúvida, mas alguém nega que aquelas 100 mil pessoas – Marchezan entre elas – embaraçaram e impediram o livre trânsito de pedestres e veículos?
– Mas era domingo! Não foi no horário de pico, como fazem esses sindicatos!
É verdade, mas a lei do prefeito não menciona nada disso. Aliás, repito, não é um prefeito que deve regular como, onde e quando as pessoas podem se manifestar. Porque qualquer prefeito sempre terá lado e partido – na democracia, quem não tem lado é o Ministério Público. É ele, como representante dos interesses sociais e individuais, que deve agir quando determinado movimento ou entidade abusa do direito à manifestação.
Foi assim no julgamento de Lula em Porto Alegre: o Ministério Público reuniu representantes de movimentos sociais, da Brigada Militar, da prefeitura e, a partir dessa negociação, estabeleceu regras e limites. Todos cumpriram direitinho. Digamos que um sindicato, por exemplo, tranque o trânsito todo dia em horário de pico. Ora, o Ministério Público tem o dever de chamar seus líderes para buscar uma saída.
– Toda democracia pressupõe conflitos, que, para não serem violentos, precisam de mediação, não de censura – resume o advogado Alberto Kopittke, especialista e consultor em segurança pública, com quem conversei longamente sobre o assunto. – Se uma manifestação exagera na perturbação da ordem, inviabilizando por muito tempo a locomoção das pessoas, a polícia também deve agir. Primeiro, estabelecendo um cenário de mediação, propondo alternativas, sugerindo que uma faixa da via seja liberada. Se for impossível chegar a um acordo com os manifestantes, aí os policiais podem, sim, usar a força para abrir a rua.
Ninguém está defendendo liberdade absoluta para qualquer grupelho sair trancando avenidas. Mas em nenhuma democracia do mundo é o prefeito quem regula essa liberdade
Quer dizer: ninguém está defendendo liberdade absoluta para qualquer grupelho sair trancando avenidas. Mas em nenhuma democracia do mundo é o prefeito quem regula essa liberdade. Nos Estados Unidos, sempre tão aclamados quando se fala em disciplina, dezenas de milhares de estudantes foram às ruas na quarta-feira – esculhambando o trânsito em uma dúzia de cidades – para protestar contra a venda de armas. Alguém dirá que lá os protestos são pacíficos.
– Não mesmo. Se uma líder negra, como a vereadora Marielle Franco, tivesse sido assassinada lá, metade do país estaria pegando fogo agora – afirma Kopittke, e a História mostra que ele tem razão.
Depois do meu comentário na Rádio Gaúcha, na quinta-feira, quando critiquei a legislação de Marchezan, a assessoria da prefeitura me ligou. Disseram que eu havia me equivocado: acertei ao falar que o prefeito pretende multar em até R$ 400 mil quem bloquear o trânsito, mas errei em outra informação, conforme explicou o assessor:
– A lei determinando que o local da manifestação precisa ser aprovado pelo município é de 1975. Foi sancionada pelo então prefeito Telmo Thompson Flores. O governo atual apenas acrescentou que, além do local, o município precisa aprovar o horário.
Ou seja: Marchezan conseguiu piorar, em 2018, uma lei da ditadura. Uma lei que, com a Constituição que viria 13 anos depois da sanção de Thompson Flores, tornou-se inócua. Porque a Constituição diz assim: "Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização (...), sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente".
Pelo menos ficou claro, agora, o espírito dessa lei: um delírio de quatro décadas atrás.