Nos vários pontos em que moderou seu discurso, o presidente eleito da Argentina, Javier Milei, não fez concessões a duas das mais espantosas promessas de campanha: extinguir o Banco Central e dolarizar a economia.
É importante observar que não se trata de atrelar o peso ao dólar, como seu antecessor, Carlos Menem, fez na década de 1990, com a conversibilidade. A intenção é mesmo substituir a moeda nacional pela americana, portanto abrir mão de política monetária, que será ditada pelo Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos.
Por mais que Milei e seus aliados repitam que, sim, o BCRA será extinto e o dólar terá livre curso na Argentina, o mercado, países relacionados e até boa parte dos seus eleitores olha de banda para essa hipótese. São tantos os obstáculos no caminho das cédulas verdes que o tamanho do desafio de ultrapassá-los só perde para o do risco de avançar nesse caminho.
O primeiro obstáculo a ser superado é aprovar as medidas no Congresso. Embora tenha vencido por larga margem - 55,69% a 44,3%, com vitória em 24 das 21 províncias (correspondentes a Estados no Brasil) argentinas -, Milei não tem base de apoio para aprovar projetos polêmicos como estes. Na Câmara, seu partido, La Libertad Avanza (LLA), tem 38 das 257 cadeiras.
Analistas políticos argentinos projetam que, caso se confirme a aliança costurada no segundo turno com o ex-presidente Maurício Macri, seu partido, o PRO, agregaria outros 40 votos. Mas menos de 80 no universo de 237 é muito pouco, especialmente considerando que o peronismo soma 109, dos quais 26 seriam "ultraleais" à atual vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, inimiga pública número 1 de Milei. O peronismo, aliás, também domina o Senado: faltam só dois aliados para ter maioria absoluta.
O tamanho do comprometimento do "macrismo" também é uma dúvida. No discurso de vitória, o presidente eleito fez questão de mencionar publicamente o "apoio desinteressado" de Macri e da candidata que disputou o primeiro turno, Patricia Bullrich. Foi interpretado como um sinal de que não haveria compromisso de fazer um governo de coalizão.
Como assumiu responsabilidade pela vitória do imprevisível Milei, o grupo de Macri quer nacos do poder. Na Argentina, isso é até desejado, para que atue como "moderador" do perfil agressivo do presidente eleito. A indicação mais esperada é a de Federico Sturzenegger para o Ministério da Economia. O nome que rima com o do ator que fez O Exterminador do Futuro foi presidente do BCRA no governo de Macri. Na Argentina, há muito ceticismo sobre seu alinhamento à dolarização e à extinção da instituição que presidiu.
O buraco cambial
Caso consiga desatar o nó institucional, Milei terá de resolver o econômico: como adotar o dólar como moeda em um país que não tem dólar? Agora que não há mais interessados em esconder a verdade inconveniente de que o BCRA tem reservas negativas - não está disponível sequer a quantia imprescindível -, é preciso renegociar com o Fundo Monetário Internacional (FMI) a maior dívida do mundo com a instituição: US$ 44 bilhões. Como as necessidades não cobertas por reservas são estimadas em US$ 6 bilhões, há um buraco de US$ 50 bilhões para tapar, além de incontáveis questões técnicas relacionadas a títulos de dívida no mercado.