O jornalista Rafael Vigna colabora com a colunista Marta Sfredo, titular deste espaço
Em agosto de 2023, a União Europeia (UE) adotou duas legislações para regular o uso de plataformas digitais e redes sociais em território europeu. Como explica o porta-voz coordenador da Comissão Europeia para Economia Digital, Pesquisa e Inovação, Johannes Bahrke, o Digital Services Act (Ato de Serviços Digitais, ou DSA na sigla em inglês), se refere ao conteúdo compartilhado nas plataformas, e o Digital Markets Act (Ato de Mercados Digitais, ou DMA), se refere ao poder de mercado das grandes companhias. À coluna, Bahrke detalha o processo de aprovação das legislações, bem como sua importância para outros países que tentam aprovar regulamentações semelhantes, como o Brasil.
Como você explicaria brevemente o DSA e o DMA para quem ainda não conhece?
Na Europa, em dezembro de 2020, foram propostas essas duas novas legislações sobre o funcionamento das grandes plataformas digitais. Uma é sobre a natureza dos conteúdos compartilhados nas redes, ilegais ou que causem danos a menores, por exemplo, que é o Digital Services Act (DSA). A outra é sobre o poder de mercado das empresas, uma regulação para proteger o mercado e a competição, chamada Digital Market Act (DMA). São regulamentações diferentes, mas com um objetivo comum, de tornar o espaço online mais justo e seguro para os cidadãos europeus.
Quais são as principais obrigações que as regulamentações estabeleceram?
No DMA, a ideia principal é alcançar o que chamamos de gatekeepers, as grandes empresas digitais que "deixam o portão fechado" para as outras empresas chegarem aos consumidores. Então essa lei se refere apenas a essas grandes empresas, as empresas menores não têm obrigações. Há um processo de designação, de empresas com pelo menos 45 milhões de usuários, número que se refere a aproximadamente 10% do número de habitantes da União Europeia, além de outros critérios, como econômicos. Depois da identificação, há a notificação das empresas para fornecerem uma lista de seus serviços que se encaixam no âmbito da lei, como redes sociais, mensagens instantâneas e semelhantes. Essas empresas precisam informar se cumprem as normas estabelecidas, compartilhando dados sobre sua operação. Em relação às obrigações, há uma lista do que as empresas devem fazer, como por exemplo permitir o acesso dos seus utilizadores profissionais aos dados que geram quando utilizam a plataforma do controlador de acesso, e do que não fazer, como rastrear os utilizadores finais fora do serviço essencial da plataforma do controlador de acesso para efeitos de publicidade direcionada sem que aqueles tenham dado o seu consentimento efetivo.
O DSA é diferente, estabelecendo obrigações para todas as plataformas, e quanto maior a plataforma, maior a obrigação. Também há uma categoria especial para aqueles que superam os 45 milhões de usuários. Todas as plataformas precisavam até fevereiro compartilhar os seus números de usuários conosco, até mesmo as pequenas, para que primeiro víssemos quantos usuários em cada lugar temos na Europa. Até fevereiro do ano que vem, as grandes empresas, que já foram designadas e hoje são 19, precisam fazer um balanço de análise de riscos, apontando em cada plataforma quais são os riscos relacionados a conteúdos ilegais, conteúdos proibidos a menores, e apresentar essa lista ao órgão regulador. Além disso, as plataformas precisam informar quais medidas estão tomando para mitigar esses riscos e moderar esse conteúdo, podendo ser derrubando contas falsas, combatendo a desinformação criminosa, dependendo de cada caso. Ao receber essa lista, o órgão analisa se as medidas são suficientes, ou se mais medidas precisam ser tomadas. Se houver necessidade, também podem ser abertos processos de investigação e outras aplicações da lei, mas esse é o processo. Além disso, as instruções de uso e as regras da plataforma devem ser claras e facilmente entendível aos usuários. Se a sua rede é destinada ao uso de jovens, como o Tiktok, as regras devem ser acessíveis e entendíveis para os jovens. Os usuários também devem ter opção de proteger e não compartilhar todos os seus dados com as plataformas sem o seu consentimento, entre outras obrigações. Essencialmente, o objetivo é criar um equilíbrio entre o uso e as publicações dos usuários e a proteção de seus direitos fundamentais.
Quais foram as principais razões para a aprovação destas legislações?
As leis foram propostas pela Comissão Europeia, e posteriormente aceitas pelo Parlamento Europeus e pelos estados-membros, em 2022. A necessidade de regulamentação dos serviços digitais já vinha aumentando muito na última década, e textos nesse sentido já vinham sendo elaborados, para a criação de novas obrigações e atualização de antigas. Contudo, especialmente com a chegada da pandemia, em 2020, observamos um crescimento exponencial de desinformação online e do compartilhamento de conteúdos criminosos em níveis muito perigosos. A pandemia foi realmente um catalisador dessa necessidade, e fez todos perceberem a urgência e a importância do tema. Também em razão da pandemia, as pessoas começaram a ficar muito mais tempo online, e mesmo muitos usuários que antes não tinham uma presença online tão significativa passaram a ter, então esse foi mais um fator que nos ajudou a perceber que essas regulações não são para proteger uma parte da sociedade, e sim para a proteção de todos. Nesse meio tempo, alguns países da União Europeia começaram a desenvolver suas próprias leis, como Alemanha e França, mas isso não fazia muito sentido, porque somos um grande mercado comum na União Europeia, e mesmo para as plataformas seria muito mais complicado ter que seguir as obrigações de diversas leis diferentes.
Houve pressão das big techs contra a aprovação das legislações?
Por um lado, sempre tivemos que lidar com lobby para aprovação de qualquer tipo de legislação, ou contra ou a favor das matérias sendo votadas, e isso certamente ocorreu desta vez novamente. Em determinado ponto, as plataformas perceberam que algum tipo de regulamentação seria criada, e que também seria melhor pra elas ter de lidar com apenas uma grande estrutura jurídica regulando o tema para os cidadãos europeus do que ter de lidar com 27 estruturas jurídicas diferentes, pois como destaquei antes, os países já estavam começando a tentar criar suas próprias leis. Então, acho que elas acabaram percebendo que seria melhor ter uma lei que trouxesse uma segurança definitiva para o setor, e que seria melhor ter essas obrigações reunidas em um só lugar do que em várias estruturas diferentes. Também é interessante notar que, como ocorreram muitos casos de desinformação relacionados à saúde e às vacinas durante a pandemia, e todo mundo percebeu quão grande era o perigo, a lei foi se fortalecendo durante as negociações, pois a pressão começou a se inverter e recair mais sobre as empresas, o que também acabou sendo decisivo nesse processo.
Houve também algum tipo de resistência mais concreta de setores da sociedade civil, alegando algum tipo de censura, por exemplo?
Em sociedades abertas e democráticas, há diferentes visões. Há sim pessoas contra qualquer tipo de moderação de conteúdo, mas, justamente, esse é um processo democrático. É por isso que assim são feitas e aprovadas as leis, e não simplesmente publicadas por decreto, são debatidas em parlamentos por representantes democraticamente eleitos, e no fim adotadas ou não. Assim como em outros temas, é possível que nem todos fiquem inteiramente satisfeitos com o resultado desse processo, e por isso é importante destacar mecanismos que reforcem a transparência tanto das ações previstas nas regulamentações, quanto dos processos de decisão que levam às suas aprovações.
Se as plataformas não seguirem as obrigações estabelecidas nas regulamentações, que tipos de punições estão previstas?
A Comissão tem poderes de investigação e de punição com as essas leis. Podemos solicitar documentações e dados para análises, e eventualmente, se for necessário, até suspender os serviços temporariamente. O primeiro passo sempre é solicitar informações, e então analisá-las para compreensão da situação. A partir daí, podem ocorrer pedidos para tomada de alguma medida, ou também aplicação de multas, que podem chegar até 6% da receita global das empresas no caso do DSA, e de 10% a 20% no caso do DMA. Também podemos impor decisões mais restritivas, como a suspensão temporária dos serviços. Contudo, a ideia é sempre trabalhar junto às plataformas e achar soluções conjuntas. As pessoas gostam de usar as plataformas digitais, só queremos que elas estejam seguras fazendo isso.
O Brasil está em um processo de tentativa de aprovação de legislações semelhantes em seu Congresso, assim como outros países pelo mundo. Como as regulações aprovadas pela União Europeia podem servir de exemplo para outras nações?
O que é evidente é que, nas sociedades democráticas, enfrentamos desafios comuns, e é muito benéfico que haja um intercâmbio internacional em relação a um tema como esse. Esse tipo de colaboração também pode ocorrer em outros assuntos importantes que compartilhamos necessidades, como na proteção ambiental, por exemplo. É claro que a realidade em cada país é particular, mas, pelo lado do DMA, a necessidade de impor condições de igualdade no mercado e assegurar que não apenas algumas poucas empresas o controlem, e pelo lado do DSA, equilibrar o direito à expressão com a segurança e a proteção de outros direitos fundamentais, são desafios que não se restringem à União Europeia, sendo também de todos os outros países democráticos. Então, é natural que legislações de referência sobre esses temas inspirem outros lugares, pois as soluções também podem ser similares. Além disso, quando uma matéria como essa começa a ser regulada em um lugar, todas as outras regulações, ou tentativas de regulação, se fortalecem, ainda mais quando lidamos com as mesmas empresas e plataformas.
* Colaborou Mathias Boni