Secretário especial para a Reforma Tributária, Bernard Appy anda ouvindo muito e falando pouco. Mesmo no país do "manicômio tributário", há temor de que as paredes derrubadas do sistema disfuncional provoquem danos colaterais. Enquanto a indústria torce pela reforma, porque terá alívio na carga, comércio e serviços temem alta. Consciente das resistências, Appy afirma nesta entrevista que nem todas as demandas serão atendidas, mas que as conversas caminham para que "acordos setoriais sejam feitos no momento hábil". E repete a fórmula do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que vem dizendo que a reforma será "a possível", para que seja política e economicamente viável.
Ainda tem chance de aprovar a primeira etapa da reforma no primeiro semestre, como era a intenção?
Na Câmara, acho que dá, sim. As discussões do grupo de trabalho estão bem avançadas, existe uma chance razoável.
O que avançou até agora?
Há negociações em dois níveis. As federativas têm discussão bastante aberta e muito construtiva com os Estados, com apoio dos pequenos munic. Algumas questões têm maior resistência dos grandes municípios.
Como Porto Alegre, que é uma expoente da resistência, não?
Mesmo essa discussão tem avançado. Há um diálogo bastante aberto. Recebo muitos secretários de Fazenda, recebi vice-governadores, como o Gabriel Souza, do Rio Grande do Sul. A conversa tem avançado, ainda há questões a resolver.
Alguns ajustes terão de ser feitos. Mas são cartas que serão colocadas na mesa na hora certa.
O outro nível envolve as questões da diferença entre setores?
Sim, precisamos entender as demandas. Alguns ajustes terão de ser feitos. Mas são cartas que serão colocadas na mesa na hora certa. E nem por nós, do governo, e sim pelo relator, que é o responsável pelo tema no Congresso. Nosso papel é fazer um trabalho de apoio ao Congresso. E estamos caminhando para isso, para que acordos setoriais sejam feitos no momento hábil.
Qual é a natureza desses ajustes, considerando que comércio e serviços se sentem prejudicados?
É preciso tomar cuidado com generalizações. Os serviços que estão no meio da cadeia, ou seja, os prestados a empresas, serão beneficiados. Hoje, compram insumos, ainda que poucos, e pagam tributos que não são recuperados. Com a reforma, poderão ter crédito sobre todos os insumos que pagaram.
Estudos independentes mostram que, considerando um efeito moderado de aceleração do crescimento, mesmo os serviços prestados ao consumidor final serão beneficiados pela reforma.
Há número grande de empresas nessa situação?
É um volume expressivo. Outra afirmação com equívoco é a de que o setor de comércio e serviços representa mais de 70% do PIB. Nessa conta, entra todo o setor público, que obviamente não paga imposto, parte do comércio na verdade paga ISS e não ICMS. E o segmento dos serviços predominantemente para empresas vai ser beneficiado pela reforma. Nessa conta, por exemplo, entra o pagamento de aluguéis, mas não tem nada a ver. O que sobra é uma parte que representa na verdade entre 12% e 13% do PIB, que é o serviço prestado ao consumidor final. É uma parcela importante, que inclui as áreas de saúde e educação, que terão um tratamento diferenciado na negociação politica do Congresso. E outra parcela grande é de serviços prestados por empresas do Simples, que não serão afetados.
Existem compensações?
Estudos independentes mostram que, considerando um efeito moderado de aceleração do crescimento, mesmo os serviços prestados ao consumidor final serão beneficiados pela reforma. Pode haver aumento de preços relativos, mas haverá benefício por maior crescimento da renda familiar. Quando isso ocorre, significa maior demanda por serviços prestados às famílias e em todos os setores.
Não é complicado ter aumento certo de custo compensado por potencial benefício futuro?
Outro estudo da FGV do Rio (clique aqui para ler o original em inglês), que considera apenas parte dos efeitos da reforma sobre o crescimento, vê os serviços prestados ao consumidor final com rentabilidade quase estável com a reforma, mesmo sem considerar boa parte dos efeitos positivos. É importante entender isso. E há outras questões, como setores hoje pouco tributados sem qualquer justificativa, como o aluguel de automóveis, que paga impostos muito menores do que os aplicados na venda de veículos. Isso causa distorções.
Obviamente, ninguém que hoje paga pouco em ICMS ou ISS quer pagar mais. Mas isso não tem sustentabilidade econômica nem social.
Isso não teria impacto sobre os trabalhadores de aplicativos de transportes?
Não, quando aumenta a renda disponível, a demanda por serviços também cresce. Poderá haver mudanças de preços relativos, mas a economia vai se organizar de forma mais eficiente. Obviamente, ninguém que hoje paga pouco em ICMS ou ISS quer pagar mais. Mas isso não tem sustentabilidade econômica nem social.
É difícil cobrar mais de quem paga pouco, porque embora exista o compromisso de não elevar a carga com a reforma, para os segmentos menos onerados, a carga sobe, como vimos no caso dos sites asiáticos.
A reforma tributária será neutra, na média. Esse problema das compras online a grande maioria dos países já resolveu com um sistema simples, aplicando a mesma alíquota que incide na produção nacional. É como se faz na maioria dos países.
Mas o ponto é como cobrar mais de quem paga pouco.
Todas as questões estão sendo resolvidas por essas duas vias, a federativa e a setorial. A transição longa faz com que o efeito não seja imediato nem traumático. A reforma tributária traz uma série de outros benefícios, como o aumento do emprego e da renda familiar. E vai ter um efeito positivo de redução de preços, porque mantém a carga tributária, mas elimina ineficiências que estão nos preços. Na compra, o consumidor paga o preço do produto, os impostos e o custo burocrático de pagar imposto, que vai diminuir enormemente. O custo do litígio tributário é uma ineficiência que pesa na economia brasileira, com caminhões dando voltas para buscar benefícios fiscais. A reforma tributária resolve essas questões. Não se pode olhar apenas o efeito sobre o montante de impostos cobrados de cada setor.
Nossa tarefa é garantir que seja a melhor possível do ponto vista técnico, mas precisa ser politicamente viável.
Qual reforma pode sair?
A reforma tributária será a possível. Nossa tarefa é garantir que seja a melhor possível do ponto vista técnico, mas precisa ser politicamente viável. Vamos ter de resolver as resistências, mas não será possível atender a todas as demandas de todos os setores.
Quando o presidente da Câmara, Arthur Lira, também diz que a reforma será a possível, quer dizer a mesma coisa? Vocês estão alinhados?
Estamos alinhados. Para a reforma ser aprovada, tem de ser a possível. O que ele está colocando é que uma reforma tecnicamente ideal pode não ser viável, então que seja a politicamente possível.
O governo está enfrentando dificuldades com a articulação política?
A reforma tributária não é uma queda de braço entre governo e oposição. É uma pauta de Brasil, que acredito que deva ter votos favoráveis de governistas e de opositores. Inclusive o governo optou por não mandar um projeto. Essa é uma pauta do Congresso que tem o apoio do governo. Acho que isso ajuda do ponto de vista da concretização da maioria política necessária para aprovação.
E não queremos um tributo novo como a CPMF para desonerar a folha. A forma de financiar virá com a tributação da renda.
A desoneração da folha não ajudaria nos ajustes necessários?
Poderia ajudar. O problema é como financiar. A situação fiscal do Brasil não permite que se faça redução de tributos sem compensação. Não queremos financiar a desoneração da folha com aumento de tributação sobre o consumo, que já é muito alta no Brasil. E não queremos um tributo novo como a CPMF para desonerar a folha. A forma de financiar virá com a tributação da renda. E não tem como colocar as duas etapas junto para apreciação. São duas matérias muito complicadas. Então, esse ponto virá com a etapa da reforma do imposto de renda.
O "cashback do povo" previsto na reforma foi mesmo inspirado no RS?
O Devolve ICMS do Rio Grande do Sul é uma das referências, estamos estudando outras, também. O Rio Grande do Sul teve um papel relevante de trazer essa discussão, um cashback como política de distribuição de renda. Mas estamos olhando todas, há várias na América Latina, o BID tem ajudado nessa discussão. Ainda não temos detalhes, mas já estamos trabalhando com o Ministério do Desenvolvimento Social. O que importa, neste momento, é que a proposta de emenda constitucional (PEC) preveja algum tipo de mecanismo desse tipo. Depois temos mais tempo para construir.
Sabemos que é preciso ter flexibilidade para viabilizar politicamente.
Algo do que estava previsto na reforma já saiu de cena?
Nada. As referências são as versões mais atuais das PECs que estavam no Congresso, a 45 e a 110. Sabemos que é preciso ter flexibilidade para viabilizar politicamente. Trabalhamos no ministério dar apoio ao Congresso, mostrando os prós e os contras.
A alíquota única é inegociável?
Não. É uma referência importante, o ideal seria ter o mínimo possível de mudança, mas não há ponto inegociável, em todos casos, inclusive o cashback. Se não tiver alíquota única, o governo não vai ficar contra a reforma tributária. É preciso que seja viável política e economicamente.