Secretário de Comércio Exterior do Brasil entre 2007 e 2011, o sócio-fundador da BMJ, Welber Barral, tem cerca de 30 anos de experiência como consultor de agências multilaterais e empresas na América Latina. Foi árbitro no Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul e do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial de Comércio (OMC), além de professor visitante em universidades no Brasil e no Exterior. Mestre em Relações Internacionais (UFSC), doutor em Direito Internacional (USP) e pós-Doutor em Direito do Comércio Internacional (Georgetown University), Barral vê no aceno feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de fazer negócios com a China sem uso de dólar mais uma manifestação política do que um plano efetivo. Observa que nada obriga a fazer negócios em dólares, mas pondera que compras e vendas internacionais dependem de mecanismos financeiros baseados em moedas conversíveis - que nem real, nem yuan são.
Primeiro, foi o aceno para evitar dólares no comércio com a Argentina, por necessidade deles, agora com a China. É viável?
No caso da Argentina, houve exagero. Agora, com a China, é um pouco diferente. De fato, como disse o presidente, não há nada que obrigue a fazer operações em dólar. Esse é um padrão que vem de Bretton Woods (a conferência que estabeleceu padrões de relações internacionais depois da Segunda Guerra Mundial). Existem operações internacionais feitas também em euros, francos suíços. Antes do dólar, a moeda de referência mundial era a libra.
São as chamadas moedas conversíveis?
Exato, nem toda moeda tem conversibilidade. E o que define essa condição não são governos, são os mercados. E não é por preferência, são conversíveis as moedas que que têm mais estabilidade ao longo do tempo. Contratos de médio e longo prazo no comércio internacional são feitos em moedas conversíveis, que permitem fazer hedge (seguro) para que haja ainda menos instabilidade nos termos negociados.
O Brasil e a China podem criar um mecanismo para ter comércio em moeda local. A grande questão é que quem importa e exporta é o operador privado, que precisa ter confiabilidade na moeda.
Existe comércio em yuans?
A Argentina tem feito operações em yuans com Irã e Rússia, o que se justifica porque são países que são alvos de sanções dos Estados Unidos, por isso têm dificuldade de operar em dólares. O Brasil e a China podem criar um mecanismo para ter comércio em moeda local. A grande questão é que quem importa e exporta é o operador privado, que precisa ter confiabilidade na moeda.
Por anos, a China foi criticada por ter câmbio fixo, isso não dificulta?
Flexibilizou um pouco, agora tem uma banda de flutuação, como o Brasil já teve. Na China, houve inflação, nada muito diferente de outras moedas internacionais. Mas ter conversibilidade significa ter aceitação pelo sistema bancário internacional.
Isso é necessário porque o comércio exterior não depende só de um lado que paga e outro que recebe?
Sim, os contratos de comércio exterior passam quase sempre por algum tipo de hedge (seguro), por envolver variação cambial. E hedge pode ser feito até na mesma moeda. Por exemplo, uma empresa vai comprar trigo para fazer biscoito e pagar em reais. Como não sabe qual será a cotação do trigo no próximo ano, tenta fazer um contrato de venda de biscoitos que cubra essa eventual oscilação. No caso do hedge cambial, vai ao banco, paga um seguro para garantir que um contrato de US$ 10 mil de prazo um pouco mais longo mantenha o valor ao longo de sua duração. Algumas empresas que fazem importação e exportação na mesma moeda têm o que se chama de "hedge natural", porque o que eventualmente perder em um dos lados dessa relação será compensado pelo outro.
Em contratos de um ano, ninguém quer correr o risco da variação cambial. É por isso que todo o mundo vai para o dólar.
Esse é um dos obstáculos para operações em yuans ou reais?
Exato, na hora de fazer o contrato nas moedas locais, como prever qual será a inflação no próximo ano? As moedas conversíveis têm mais previsibilidade. Como a Argentina tem déficit comercial estrutural com o Brasil (compra mais do que vende), já existem operações em moeda local, mas algo em torno de 3%, e todas operações de curto prazo, de 30 dias. Em contratos de um ano, ninguém quer correr o risco da variação cambial. É por isso que todo o mundo vai para o dólar.
O surto inflacionário nos EUA e no mundo tem algum impacto sobre isso?
É uma inflação global e episódica. Não é resultado de forte desvalorização do dólar, como em 1973, quando (Richard) Nixon quebrou o padrão ouro, houve crise do petróleo. Comparativamente, o dólar ainda é mais estável. Uma boa comparação é o bitcoin. Tem gente que usa. E por que não se usa mais? Porque é muito instável. Comparado a real e yuan, o dólar ainda é o mais estável.
O "banco dos Brics" poderia criar essa ferramenta?
Não há nada na constituição do banco que proíba. Não conheço o estatuto em detalhes, mas se os criadores, os instituidores derem mandato para fazer, poderia fazer.
O discurso duro de Lula é um sinal de estresse com os EUA ou faz parte do jogo?
Faz parte do jogo. O Brasil vai tentar se equilibrar entre as duas potências enquanto for possível.
Se acontecesse hoje (um conflito grave entre China e Taiwan), o mundo pararia.
Você está voltando de uma conferência sobre defesa. A eventual escalada no conflito entre China e Taiwan foi o grande assunto?
Sim, só se falou nisso. A percepção de boa parte dos participantes é de que essa situação tende a se prolongar. Taiwan não é um país independente, mas o Ocidente não quer que a China faça lá o que está fazendo em Hong Kong. Enquanto conseguir manter esse status quo, haverá tensão permanente. É a fórmula de Raymond Aron (filósofo francês): 'paz impossível, guerra improvável'.
Se algo mais grave acontecesse, pararia o mundo, dada a importância da produção de chips em Taiwan?
Se acontecesse hoje, o mundo pararia. Mas tanto a Europa quanto os Estados Unidos estão dando muitos incentivos à produção local, e esse cenário vai mudar em quatro ou cinco anos.
Curiosidade: o nome oficial da moeda chinesa é "renminbi", mas os valores são medidos em unidades chamadas de yuans. Ou seja, se o tema é preço, usa-se "yuan". Se é uma questão monetária, usa-se "renminbi".