Último ministro da Fazenda que viu a hiperinflação de sua cadeira — a taxa anual chegou a 2.477% em 1993, ano anterior ao que assumiu o cargo —, Rubens Ricupero não vê risco de que o dragão volte a virar monstro no curto prazo, apesar de não ter prognósticos animadores para o aumento de preços. Secretário-Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) de 1995 a 1999 e de 1999 a 2004, Ricupero também foi protagonista da globalização. Agora, vê esse balão desinflar, diante da crise financeira de 2007/2008, da pandemia e da guerra na Ucrânia. Depois que a inflação nos Estados Unidos bateu em 8,5%, a maior desde 1981, e o presidente do Banco Central (BC) manifestou "surpresa" com a alta dos preços no Brasil, a coluna foi ouvir uma testemunha da história para projetar um futuro cada vez mais incerto.
Por que a inflação disparou?
O mundo não havia se recuperado totalmente da crise financeira de 2007/2008. Tivemos um período muito longo absolutamente anômalo, com juros em zero ou até abaixo de zero nos países mais desenvolvidos. Não havia inflação. Quando a pandemia começou, as economias mais avançadas gastaram quantias gigantescas para combater seus efeitos, aumentaram muito o déficit fiscal. O Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) injetou toneladas de liquidez na economia. E nada acontecia, parecia que a economia estava imune à inflação. Quando o pânico amainou, começou a recuperação e ocorreu algo que ninguém havia previsto. Houve falta de suprimento. Normalmente, a inflação sobe por choque de demanda, ou seja, quando há pleno emprego, as pessoas compram muito, e os preços sobem. Mas o que houve foi um colossal choque de oferta. Quando as indústrias começaram a se recuperar, a primeira coisa que se descobriu é que havia grandes estrangulamentos. Faltavam suprimentos, insumos, chips. É daí que começa, de fato, o novo episódio de inflação, diferente do passado. A última grande inflação americana havia sido no final dos anos 1970. Seguiu-se à guerra no Vietnã, chegou a 11% ao ano. Foi quando (Ronald) Reagan assumiu e nomeou Paul Volker como presidente do Fed, que aumentou o juro e levou à crise da dívida na América Latina.
A variante da inflação no Brasil é mais maligna, por não ter crescimento nem emprego. É uma espécie de vírus diferente, como se fosse uma mutação da covid. Nos países ricos, o custo de vida está alto, mas tem emprego, tanto que as pessoas podem escolher, e a economia deslanchou.
A inflação no Brasil tem características diferentes ou é parte do que ocorre no mundo?
Há características muito peculiares nos países avançados, não me atreveria a comparar com a nossa. Nos Estados Unidos, que tem o quadro mais claro de todos, a inflação muito elevada ocorre com taxas de crescimento recordes do PIB e pleno emprego (desemprego de 3,6% em março). O mesmo ocorre no Reino Unido. O contraste conosco é grande. Aqui, a inflação é muito maior, e o crescimento é anêmico, quase imperceptível. A taxa de desemprego segue alta (11,2% em fevereiro). A variante da inflação no Brasil é mais maligna, por não ter crescimento nem emprego. É uma espécie de vírus diferente, como se fosse uma mutação da covid. Nos países ricos, o custo de vida está alto, mas tem emprego e a economia deslanchou. No Brasil, não temos esse consolo. Estamos na UTI. É uma situação meio esquizofrênica, em que o BC eleva o juro para reduzir o consumo, e o governo toma medidas para estimular gastos, como a liberação do FGTS. Então, já havia alta de preços sem compensação de crescimento e emprego, e tem esse outro problema, que é o aumento de juro sem política fiscal adequada, que não só não ajuda, mas conflita.
Mas é uma situação temporária?
Agora, tudo depende da guerra, de como vai se processar e como vai terminar. Caso se prolongue por meses, com destruição cada vez maior, a primeira consequência é que as sanções econômicas não só serão mantidas e agravadas, como em algum momento pode haver um passo adiante, como cortar as compras da Europa de petróleo e gás da Rússia. Se guerra ficar mais terrível, não se pode excluir a hipótese de volta de uma nova encarnação da guerra fria. Não igual à que houve no passado, mas com a mesma característica central, que é a divisão do mundo em dois blocos ativamente hostis.
É preciso lembrar que a globalização começou quando acabaram o comunismo e a Guerra Fria, depois da queda do muro de Berlim, da dissolução da União Soviética, quando quase todos os países viraram capitalistas.
Seria um risco à globalização?
É preciso lembrar que a globalização começou entre os anos 1980 e 1990, quando acabaram o comunismo e a Guerra Fria, depois da queda do muro de Berlim, da dissolução da União Soviética, quando quase todos os países viraram capitalistas. O que a tornou possível foi a unificação do espaço planetário, para permitir a circulação mais livre possível de mercadorias, investimentos, tecnologia e trabalho, que foi o que avançou menos. Desde o primeiro baque, a crise de 2007/2008, nunca mais voltou ao que tinha sido antes. O crescimento do comércio mundial a taxas muitas vezes superiores às do PIB global durou anos, até 2008. Foi a grande marca da globalização. Havia dúvida se era temporário. Agora, está se tornando mais nítido. Houve a crise, a pandemia, e agora a guerra. Todos os três apontam para o mesmo rumo. Outra marca da globalização foi a diversificação da produção, os componentes vinham de origens geográficas muito diferentes. Isso permitiu uma revolução em telecomunicações e logística, disseminou a conteinerização. Foi resultado de uma geopolítica distendida.
O que pode mudar?
Há uma tendência de cada país querer se tornar menos dependente, que se propagou com muita força. A guerra tem, como uma de suas consequências, a inversão de prioridades. Basta olhar o mapa para ver que a Europa deveria importar petróleo, gás e carvão da Rússia. São territórios contíguos. Quando vem a guerra, essa vantagem da economia de custo desaparece. É suplantada pela preocupação de segurança. E quanto mais dure a guerra, quanto mais difícil for o desenlace, pior. Pode ser como a guerra das Coreias, que terminou sem tratado de paz, apenas com cessar-fogo e os dois lados ainda inimigos. E há outro fator que já vem de algum tempo, que é a mudança no teor do relacionamento entre EUA e China.
Não é só um fator. É pandemia, inflação, agravamento da situação geopolítica. Se agravar ainda mais com a guerra, a conclusão tem de ser que o período áureo da globalização não existe mais.
A China desequilibra a equação?
Desde 2014, no governo Obama, houve uma tentativa de deslocar o eixo na Ásia do Oriente Médio para a China. Imaginava-se que, à medida que a China ficasse rica, teria um comportamento mais parecido com o dos ocidentais. Mas o país está cada vez mais autoritário, com agravamento das situações em Taiwan, Hong Kong. Isso levou os EUA a começar a se desvincular. O Trump adotou sanções, fez pressão para que empresas americanas voltassem. E Biden não mudou nada. O Japão tem um programa bilionário para repatriar empresas que foram para a China, são mais de 20 mil, é a maior presença internacional. E a China adotou seu plano de circulação dupla, quer depender mais do consumo interno e manter ligações com o mundo. Há sinais claros de que a fase de diversificar as cadeias globais de valor passou. Atingiu seu pico e tem diminuído. A China tem política ativa de nacionalização, que não é de 100%, não fabrica tudo no país, mas os números mostram que há 10 anos importava muito mais insumos do que hoje. Não é só um fator. É pandemia, inflação, agravamento da situação geopolítica. Se agravar ainda mais com a guerra, a conclusão tem de ser que o período áureo da globalização não existe mais. Não é uma opinião só minha. Na sua carta aos acionistas, Larry Fink, do BlackRock, diz que a guerra na Ucrânia pôs fim a pelo menos três décadas de globalização. Quando o CEO da maior firma de administração de recursos do mundo proclama o fim da globalização, é de tomar nota. A esperança é de que as coisas agora não caminhem longe demais na direção oposta.
O que vem pela frente?
Os prognósticos não são animadores, nem em relação à inflação, nem à globalização. A inflação é mais conjuntural, mas a globalização é uma força profunda, que pode tornar a recuperação mais difícil. O cenário mais propício seria um final como o da crise dos mísseis, em 1962, que foi mais perigosa do que a da Ucrânia. Havia risco de confronto nuclear direto entre EUA e URSS, mas se conseguiu evitar no último minuto e levou a um compromisso de ambas as partes que permitiu uma longa fase de distensão. A solução ideal seria algo semelhante, que não abrangesse somente a Ucrânia, mas permitisse que o antagonismo entre o Ocidente, de um lado, de Rússia e China, de outro, se desse sob a forma de uma competição pacífica. Mas não visualizo esse tipo de entendimento agora. Se não ocorrer, vamos ter um mundo totalmente dividido, pode chegar ao ponto de ter uma internet para cada lado. Seria péssimo, a unidade da internet é um símbolo da unificação do planeta.
Podemos conviver durante muito tempo com inflação alta, inclusive no próximo ano, as expectativas começam a se complicar. Mas tudo indica que a hiperinflação não vai voltar.
Há risco de volta da hiperinflação?
Acho que não no curto prazo. A hiperinflação no Brasil, na época, foi muito resultado da indexação, da correção monetária. Apesar de tudo o que está acontecendo, o BC tenta segurar. E agora tem mandato fixo, para além do mandato presidencial. Podemos conviver durante muito tempo com inflação alta, inclusive no próximo ano, as expectativas começam a se complicar. Mas tudo indica que a hiperinflação não vai voltar.