Em janeiro, a bolsa brasileira, que não acompanhara os recordes em série de sua referência, a bolsa de Nova York, ao longo de 2021, descolou-se de vez. Empinou enquanto o mundo discute alta de juro nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que o real se valorizou ante o dólar. A coluna ouviu Roberto Padovani, economista-chefe do Banco Votorantim (BV), que definiu essa fase como "otimismo estranho" em artigo, para explicar o que ocorre no mercado neste início de 2022. Uma síntese possível da resposta seria "é o Fed, estúpido", parafraseando o assessor de campanha de Bill Clinton, James Carville, que cunhou a expressão "é a economia, estúpido", para justificar o bom desempenho do então candidato à reeleição cercado de escândalos nos EUA.
O que está ocorrendo no mercado financeiro?
A principal história de dezembro e janeiro é que o Federal Reserve (Fed, banco central dos Estados Unidos) passou a retirar com mais rapidez seus estímulos financeiros. Na crise da pandemia, colocou o juro em zero e, repetindo 2008, passou a comprar títulos públicos e privados. Quando faz isso, aumenta a liquidez, quer dizer, coloca dinheiro para circular. Todo mundo sabia que, em algum momento, seria interrompido. Em 2021, o mercado previa que essa retirada, chamada de tapering, só começaria no primeiro semestre de 2022, e o juro só subiria no final de 2022 ou em 2023. E ainda depois, talvez 2024, viria a revenda dos títulos comprados, chamada "redução de balanço" porque esses papéis comprados vão para o balanço do Fed.
Não se previa inflação tão alta?
A inflação nos Estados Unidos em 2021 foi de 6,8%, a maior desde 1982. E há sinais de que o crescimento da economia continua em 2022. A projeção é de que a taxa de desemprego por lá volte para 3%, o que é raro, talvez seja a quinta vez em 70 anos. A média é de 6%. Em dezembro, os diretores do Fed passaram a comunicar que o estímulo monetário acabaria em março, em seguida o juro subiria e a redução de balanço começaria ainda em 2022. Como resultado, os títulos do Tesouro americano de 10 anos tiveram alta importante, de 1,4% para 1,9% em meados de janeiro.
Quando entenderam que o juro ia subir, viram que a bolsa de Nova York já subiu demais e começaram a pensar onde iriam.
Qual foi a reação dos investidores?
Com o juro tão baixo, estavam todos em bolsa, ou comprando ativos reais, como empresas, especialmente de tecnologia. Quando entenderam que o juro ia subir, viram que a bolsa de Nova York já subiu demais e começaram a pensar onde iriam. Como ainda há incerteza sobre até onde vai o juro americano, se serão mesmo sete altas, se vai começar com 0,25 ou 0,5 ponto percentual, querem esperar até que fique mais claro para voltar à renda fixa. Aí começaram buscar barganhas no mundo, ou seja, bolsas que estão "baratas".
É o caso da brasileira?
Sim, há seis ou sete meses está descolada de Nova York. Lá subia, aqui caía. Há consenso de que a bolsa brasileira está barata, seja qual for a métrica, relação preço/lucro, em dólares, múltiplos muito baixos. É relativamente grande entre os emergentes, e a situação do país não é tão dramática quanto as de Turquia, Argentina ou Rússia. Então, com bolsa barata e risco menor, comparativamente, o que viu na segunda quinzena de janeiro foi um ingresso massivo de recursos estrangeiros na bolsa, que não se identifica em títulos públicos ou de empresa no Brasil. Isso fez com que o Ibovespa, que estava em 100 mil pontos, chegasse a 113 mil em poucos dias. E o dólar despencou. Estava em R$ 5,60, passou a R$ 5,30.
É verdade, no mercado chega a se falar na entrada de US$ 65 bilhões, quando fui olhar os dados do BC, não se vê isso lá.
Mas há divergência entre dados de entrada de dólares entre bolsa e Banco Central (BC)?
É verdade, no mercado chega a se falar na entrada de US$ 65 bilhões, quando fui olhar os dados do BC, não se vê isso lá. É uma charada. Talvez sejam recursos que já estavam aqui e foram realocados para a bolsa, mas não se sabe com exatidão. E quando tem investidor estrangeiro entrando, gera expectativa de valorização e atrai investimento local.
Por que você vê um "otimismo estranho"?
Quando muda a estratégia do investimento estrangeiro, há tendência natural de atribuir esse movimento a fatores econômicos ou políticos locais. Conversando com colegas, percebo que a versão dominante, em 90% dos casos, é de atribuir a entrada à percepção de que o Brasil ficou mais atrativo por redução do risco político: a eleição, que seria polarizada, será tranquila porque já estaria definida.
A transição política estaria resolvida e haveria melhora na qualidade da gestão econômica. Mas é uma desculpa para justificar um movimento de preços.
Como assim?
O mercado está usando duas leituras. Uma é de que provavelmente Lula ganhe e, como em 2003, adote uma gestão responsável. Outra, de que qualquer que seja o próximo presidente, não seria Bolsonaro e adotaria políticas de melhor qualidade. Essa é a versão que circula no Exterior sobre o Brasil. A transição política estaria resolvida e haveria melhora na qualidade da gestão econômica. Na verdade, o que está havendo, na bolsa e na moeda no Brasil, é por decisão do Fed. O cenário local é secundário.
É um movimento que pode não durar?
A tese dominante tem problemas. Primeiro, a eleição não está definida. Analistas políticos veem chance de o atual presidente recuperar terreno. Segundo, uma coisa é discurso de campanha, outra é gestão econômica. Há uma suposição equivocada de que o debate eleitoral será pró-mercado. Não será. No mercado de votos, os candidatos têm de diferenciar seus produtos. Terceiro, existe incentivo para que seja tenso. A sociedade "compra" o discurso do político, por mais que se saiba que seja mais populista na campanha. Ouvir e relativizar não é padrão no Brasil nem no mundo. Pode gerar instabilidade, com dólar para cima e bolsa para baixo, o oposto que temos visto nos últimos dias. Quarto, com juro em alta nos EUA, haverá menos liquidez para emergentes, em um ano com crescimento econômico baixo e dificuldade de arrecadar, com pressões por aumento do gasto público e com dívida pública subindo no Brasil. O consenso, por alta de juro no Brasil e baixo crescimento, é de que a trajetória de alta na dívida só estabilize em 2029. Até lá, temos fragilidade fiscal.
A alta volatilidade sugere imprevisibilidade. A história é uma só: é o Fed.
A histórica perda de valor da dona do Facebook tem relação com esse cenário?
É um problema da empresa, de seu mercado deles. É uma questão bem particular, tanto que a Amazon, que teve um bom balanço, foi em sentido contrário (valorização de 15% na sexta-feira, após queda da Meta de 26% na quinta). Mas isso mostra como o mercado está instável, porque ninguém sabe o que vai acontecer. A alta volatilidade sugere imprevisibilidade. A história é uma só: é o Fed.