Foi uma apresentação inusual do Relatório Trimestral de Inflação (RTI) do Banco Central (BC). O dólar recém havia deixado a órbita de R$ 6,30. E lado a lado e em clima amigável, estavam o atual presidente, Roberto Campos Neto, e o futuro, Gabriel Galípolo.
Campos Neto aproveitou para avisar que essa seria sua última manifestação pública como presidente do BC, porque entra em recesso no sábado (21) e Galípolo assume como interino para virar titular em 1º de janeiro. Por isso, falaria mais sobre o passado, deixando a Galípolo perguntas sobre perspectivas futuras.
E o sucessor não hesitou: chamou a responsabilidade não só pelo futuro, mas também sobre o passado. O principal recado foi "a barra é alta", que repetiu sempre que foi perguntado sobre o que poderia mudar a projeção de que a taxa de juro chegará a 14,25% em 19 de março.
Isso significa que será necessária uma mudança muito drástica no cenário para que o BC não cumpra a advertência de que virão mais duas altas na Selic de 1 ponto percentual, além da administrada na semana passada. Ironizando sua repetição de metáforas náuticas, afirmou:
— Não existem bons ventos para uma nau sem direção. Temos clareza de onde estamos indo, fomos bastante corajosos ao dar guidance (anunciar o que vai fazer) para mais duas reuniões à frente. Estamos indo para juro em patamar restritivo com alguma segurança. A barra para mudar será muito alta.
No linguajar elegante de um banqueiro central, Galípolo também assumiu o protagonismo da decisão caracterizada como um choque de juro. Ao agradecer a "generosidade" de Campos Neto em relação a ele, relatou que o antecessor pediu ao colegiado que a posição do substituto fosse "mais considerada" na reunião da semana passada.
Dado o grau de polarização do país, a civilidade da passagem de bastão chamou atenção. Campos Neto fez questão de afirmar que as atuais intervenções do BC no dólar ocorrem "da mesma forma" como ocorreram anteriores:
— O BC age no câmbio quando há disfuncionalidade, por saída extraordinária ou fator de mercado. Começou a ter uma saída atípica no fim do ano, com dividendos acima da média porque as empresas tiveram resultado maior, mas também saída maior de pessoas físicas em plataformas com volumes menores de operações. Não há desejo do BC de perseguir algum nível de câmbio, é que neste ano tem fluxo atípico muito grande.
Galípolo fez questão de chancelar a atuação de Campos Neto, atacado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por dirigentes petistas:
— Sou testemunha de que sempre atuou com preocupação com o país, pensando no melhor para a economia brasileira. Essa transição é o primeiro teste da autonomia do BC em uma sociedade conflagrada e demonstra a força institucional do BC. Agradeço como presidente, como brasileiro e como amigo.
Mitos e verdades sobre a disparada do dólar
O real está derretendo?
"Derreter" é uma palavra forte que não tem indicadores para aferir se está correta ou não. O que se pode dizer, sem medo de errar, é que a moeda brasileira perdeu cerca de 30% de seu poder de compra em dólares, o que não é pouca coisa. Existe um indicador internacional chamado "paridade do poder de compra" que tenta medir exatamente essa condição. No ranking de 2024, que será elaborado no próximo ano, o Brasil tende a perder posições.
É um ataque especulativo?
Há controvérsias entre economistas sobre esse ponto. Os mais ortodoxos tendem a rejeitar essa ideia. Ataques especulativos são movimentos de mercado que se formam contra determinado ativo - normalmente, uma moeda, como o real - quando um ou alguns investidores/especuladores fazem uma aposta na desvalorização desse ativo e acabam formando um movimento de manada, levando ao efeito desejado. Embora haja uma forte demanda de dólares no Brasil nesse momento, por movimentos cíclicos de mercado, o volume ainda não configuraria o envolvido em um ataque especulativo tradicional. Mesmo assim, vários investidores/especuladores que estavam "comprados em dólar" (apostando no enfraquecimento do real) já ganharam bastante dinheiro.
Houve fake news?
A Advocacia-Geral da União (AGU) acionou a Polícia Federal para investigar o efeito de uma fake news envolvendo o futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo. Um site que simulava ser uma gestora de investimentos fez uma publicação atribuindo a Galípolo a frase "a moeda dos Brics nos salvaguardaria da extrema influencia que o dólar exerce no nosso mercado". Então, por partes: houve, de fato, uma falsificação, uma mentira. O quanto essa fraude influenciou o mercado é outro problema. O "não fato" teria ocorrido na terça-feira (17), quando a "alta" –mais uma oscilação positiva – do dólar se limitou a 0,02%. No dia seguinte, sem fake news até onde se sabe, houve disparada de 2,8%.
Então, o que está acontecendo?
A pressão no câmbio se intensificou entre o final de novembro e o início de dezembro, quando o governo Lula apresentou seu pacote de corte de gastos. A avaliação de que as medidas são insuficientes para dar sustentação ao arcabouço fiscal – conjunto de regras que prevê meta de déficit zero neste e no próximo ano – foi agravada pelo anúncio de isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil. Foi a primeira vez na história que o dólar foi cotado a R$ 6. O objetivo do pacote era reduzir despesa para não gerar déficit além do aceitável. Se a receita também é reduzida, o rombo se mantém ou até se amplia, dependendo das contas.
Por que o mercado reage mal?
Sempre que o governo gasta mais do que arrecada, tem de tirar esse dinheiro que "não existe" de algum lugar. É a velha máxima de "dinheiro não dá em árvore". É como quando alguém estoura o orçamento mensal e precisa recorrer ao cartão de crédito, ao cheque especial ou a empréstimo. São recursos de terceiros, que emprestam a um determinado custo. No caso dos governos, quem empresta é o mercado, intermediando aplicações de pessoas físicas e instituições que fazem aplicações financeiras. E para colocar no mercado títulos de uma dívida que não para de crescer, o mercado exige maior juro. Quando esse juro sobe, leva junto o dólar.
Então o mercado está certo?
Não necessariamente. Até agentes de mercado reconhecem que a alta do dólar é excessiva em um país que tem uma montanha de reservas cambiais. Esse paredão de defesa tinha US$ 363,8 bilhões no dia 11 de dezembro teve uma pequena aplainada depois das sucessivas intervenções do Banco Central (BC) no mercado de câmbio. Sete dias depois, na quarta-feira (18), o estoque havia encolhido para US$ 357,1 bilhões. Até agora, a soma das doses de BC no mercado atingem quase US$ 17 bilhões. É bom lembrar que nem todas as formas de intervenção do BC no câmbio têm impacto nas reservas.