Se o ano costuma começar com otimismo, logo também surge o debate sobre os principais riscos que embute. Na primeira semana relativamente útil — alguns recessos se estenderam —, a discussão foi dominada pelo painel Top Risks 2022, do Eurasia Group, consultoria de risco político e de negócios fundada em 1998 por Ian Bremmer em Nova York. Diretor-gerente do Eurasia Group para as Américas, Christopher Garman se tornou referência na análise de cenários no Brasil. Antes, atuou na Tendências, uma das principais consultorias econômicas do país. Mestre em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, tem cidadanias brasileira e americana. Nesta entrevista, Garman detalha os pontos mais sensíveis ao Brasil.
Por que a Turquia aparece nos Top Risks e o Brasil, não?
Colocamos o Brasil na categoria red herring (em tradução literal, arenque vermelho, mas se trata de expressão usada para definir risco falso ou exagerado, porque não existe 'arenque vermelho' na natureza, só como resultado de um processo artificial, a defumação). Não estamos otimistas, mas vemos preocupações exageradas em duas frentes. Uma é o risco das eleições para a democracia, que foi maior nas semanas que antecederam o 7 de Setembro. Mesmo se o presidente questionar a regularidade das eleições, porque é provável que não vença, não vemos grande ameaça à democracia. Os militares não vão acompanhar o presidente em uma aventura. E toda a classe política tende a acompanhar quem sai vitorioso. Por isso, não acredito que o resultado não seja respeitado. Outro temor excessivo é sobre a reação ruim do mercado financeiro ante uma possível e provável vitória do Lula, favorito na disputa. Não acredito em guinada radical à esquerda, como mostra a indicação de Alkmin como vice (ainda não formalizada), mas isso não significa que um eventual terceiro mandato de Lula será fácil. A Turquia é um risco maior porque o presidente (Recep) Erdogan abandonou a responsabilidade macroeconômica por completo, eliminou a autonomia do Banco Central, reduziu juro a despeito da desvalorização da moeda. É um país que está em rota muito preocupante.
Um ano depois da invasão do Capitólio, vê possibilidade de algo semelhante no Brasil?
Não descarto, mas o Brasil tem uma vantagem em relação aos EUA um ano atrás: todos os atores estão preparados para esse risco. Vimos no 7 de Setembro. Caso ocorra, a classe política se unirá para defender o resultado das urnas. O problema é o efeito nefasto ao longo do tempo. Nos EUA, parte da população acredita que a eleição foi roubada. Por isso, incluímos as eleições para o Congresso como risco alto. Outra vantagem do Brasil é não ter colégio eleitoral, que se presta mais à contestação jurídica. No Brasil, não estou preocupado com a eleição, mas com o dia depois. Se grande parcela da população acredita que a eleição não é legítima, abre espaço para oposição mais aguerrida, disposta a ir às ruas. Isso pode levar a contestações, preocupação maior ao longo do tempo.
O custo de inibir esse contágio tão rápido pode ser maior, com impacto na economia chinesa acima do previsto. Isso pode provocar mais dificuldades na cadeira produtiva, o que é importante para o Brasil, porque pode exacerbar pressões inflacionárias.
Por que a covid lidera de novo a lista dos riscos, com ênfase na China?
É o principal risco, as repercussões da covid não vão se dissipar tão rápido. No topo da lista, está a preocupação com a China, que tem política de tolerância zero com a pandemia, até agora bem sucedida. Com muitas restrições, conseguiu controlar de maneira surpreendente, que não é possível em estados democráticos. Mas não é a política adequada às especificidades da Ômicron, muito mais contagiosa e menos letal. O custo de inibir esse contágio tão rápido pode ser maior, com impacto na economia chinesa acima do previsto. Isso pode provocar mais dificuldades na cadeia produtiva, o que é importante para o Brasil, porque pode exacerbar pressões inflacionárias. O setor agrícola do Rio Grande do Sul depende muito de como a economia chinesa se comporta. O governo de Pequim estava mais disposto a aceitar menor crescimento para reduzir bolhas no setor imobiliário. Agora, lidando com a covid, pode desistir do objetivo de furar essas bolhas, como a da Evergrande.
Qual a ameaça associada à regulação das companhias de tecnologia?
Não é um risco agudo para este ano, mas tem pernas além de 2022. Estamos chamando a atenção para o fato de a regulação estar atrasada ante os avanços tecnológicos. O ambiente fica mais propício para a propagação de fake news. O papel que uma rede social exerce, com decisão de banir o presidente da República do acesso à plataforma, como o Twitter fez com (o ex-presidente dos EUA, Donald) Trump, abre um território perigoso. No Brasil, restringir plataformas sociais do campo bolsonarista pode ser interpretado como interferência indevida e aumentar a suspeita de resultados ilegítimos. A Europa tem avançado mais no campo regulatório e pode gerar padrão que seja copiado em outros países.
A transição energética gera custos de curto prazo e aumento de preços de energia, com consequências em problemas políticos internos.
Por que a transição energética está na lista?
Há um movimento muito brusco de mudanças em projetos de energia em favor das renováveis, para reduzir a emissão de carbono. Isso retira investimentos para as energias tradicionais, mas a produção das novas fontes não sustenta a demanda e o preço da energia acaba ficando mais alto. Isso acabou pesando no choque de energia, que alimenta desafios econômicos. No Brasil, o preço do diesel e da gasolina subiu 50%. As famílias de baixa renda pagam um preço enorme. Outro impacto é no preço do fertilizante (feito com derivados de petróleo). Houve aumento de 50% do importado da China, que está focada em atender a demanda local. Há uma corrida para os fertilizantes que impacta a próxima safra e cria efeito cascata. Ainda assim, acredito que o avanço da COP26 tenha sido importante, embora não suficiente. É preciso prestar atenção para as repercussões da transição para uma economia mais verde. A transição energética gera custos de curto prazo e aumento de preços de energia, com consequências em problemas políticos internos.
Há alerta para as empresas, sobre o impacto da cultura do cancelamento.
Temos visto, na nossa base de clientes, como empresas estão cada vez mais pressionadas em ambiente social novo. Consumidores e funcionários colocam novas demandas sobre posicionamento em questões sociais e ambientais. É um efeito geracional. Os jovens consomem de forma consciente, focando mais em temas sociais, direitos humanos, diversidade. É uma tendência que deve crescer. Temos dados de pesquisas que mostram que 83% dos millenials querem marcas alinhadas a seus valores, 65% já boicotaram produtos devido a temas sociais e 68% dos funcionários consideram sair do emprego se a empresa não estiver alinhada a valores sociais. É uma mudança geracional e estrutural, que já se manifesta e vai aumentar.
Política é uma escolha, mas é preciso identificar temas sobre os quais é imperativo trabalhar, como o de pegada de carbono. Será preciso fazer em algum momento, e pode ter custo maior se ficar para depois.
O que o Eurasia costuma recomendar nesse casos?
Trabalhamos com clientes para identificar temas duradouros sobre os quais vale a pena se posicionar, e outros sobre os quais talvez seja melhor pensar duas vezes. Política é uma escolha, mas é preciso identificar temas sobre os quais é imperativo trabalhar, como o de pegada de carbono. Será essencial, não adianta relutar. Será preciso fazer em algum momento, e pode ter custo maior se ficar para depois.
O resumo dos principais riscos globais, segundo o Eurasia Group
1. Não há risco zero em covid
O sucesso inicial da China na política de zero-covid e o envolvimento pessoal do presidente Xi Jinping nessa estratégia torna impossível uma mudança de curso, que pode ter custo alto.
2. Mundo technopolar
O mundo físico está uma bagunça porque nenhum país quer ou consegue se impor como liderança global e o espaço digital tem governança ainda mais frágil.
3. Eleições congressuais nos EUA
O voto neste ano não deve provocar uma crise, mas representa um ponto de inflexão histórico.
4. China em casa
As políticas de Xi Jinping elevam o risco de estagnação em um momento em que a economia chinesa enfrenta problemas.
5. Rússia
Se Putin não obtiver concessões dos EUA e do mundo ocidental, é provável que aja e deflagre uma crise internacional.
6. Irã
O governo Biden não se preparou para a possibilidade que que o governo de Teerã não esteja interessado em retomar o acordo nuclear.
7. Na energia verde, dois passos à frente, um atrás
A transição energética já está ocorrendo, e não será suave.
8. Países abandonados
Ninguém quer preencher o vácuo de poder global e muitos países e regiões vão sofrer as consequências.
9. Corporações e as guerra culturais
Empresas vão gastar mais tempo e dinheiro para avaliar posicionamento em temas como ambiente, questões sociais, política e cultura.
10. Turquia
A política externa de Erdogan seguirá ameaçadora para distrair eleitores da crise econômica interna.