Pouco antes de embarcar para a viagem a Dubai, justificada pela busca de investimentos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tentou cancelar a sessão da Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados à qual deveria, na terça-feira (16), esclarecer suas operações com offshore (empresa virtual no Exterior) em paraíso fiscal do Caribe.
Conforme expôs o trabalho jornalístico internacional Pandora Papers, Guedes tem US$ 9,55 milhões nas Ilhas Virgens Britânicas. No domingo, o ministro afirmou que objetivo da comitiva é "buscar petrodólares", expressão que ecoa os anos 1970.
Vejam, caros leitores, que o pedido de esclarecimento não foi feito por petistas ressentidos ou comunistas renitentes. Teve participação, entre outros, do deputado Kim Katagiri (DEM-SP), ex-aliado de Jair Bolsonaro e seu governo. Segundo Kataguiri, o presidente da comissão, Afonso Motta (PDT-RS), não aceita o cancelamento e convocará o ministro no dia 23, a terça-feira seguinte à data anterior.
O ministro tem o dever de esclarecer. Acha que não precisa comparecer. Pediu, em ofício que "sejam acolhidas como suficientes as informações prestadas por intermédio dos documentos apresentados no dia 9 de novembro de 2021 a essa comissão". O episódio foi usado como combustível do fogo amigo na Esplanada dos Ministérios e na Praças dos Três Poderes, mas isso é do jogo.
O que não é razoável é impor aos brasileiros uma inflação de dois dígitos, em boa parte acentuada pela alta no dólar, e achar que ninguém tem direito de saber como gerencia suas finanças fora desse pandemônio. E acima de tudo, protegido do fisco que ele mesmo comanda (veja abaixo uma lista de pontos a explicar que a coluna republica).
A coluna já deixou claro: simplesmente ter uma offshore não é ilegal nem configura crime de qualquer tipo. Mas segue considerando eticamente questionável que o o comandante da política econômica do país tenha milhões de dólares abrigados de tributos e solavancos em um paraíso fiscal.
A viagem ao Oriente Médio, que inclui as potências Bahrein e Catar, é de fato acompanhada por vários empresários representados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Mas também está na comitiva o ex-deputado Magno Malta, como relata uma fonte insuspeita, o deputado Helio Lopes (PSL-RJ), que se autoproclamou Helio Bolsonaro na campanha eleitoral. Rejeitado na composição do ministério, Malta deve ser mesmo um ímã de investimentos. Só isso para explicar sua presença na comitiva.
Em 2021, teria maior potencial uma viagem a países que conseguiram transformar a tecnologia em dólares, ou qualquer outra moeda, do que os que vivem ainda mergulhados na riqueza que já começa a perder terreno.
O que a coluna avalia que deve ser explicado
1. Código de Conduta da Alta Administração Federal
O artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal (clique aqui para ler os termos ou veja no final do texto a íntegra do artigo) proíbe aplicações financeiras, no Brasil ou no Exterior, que possam ser afetadas por políticas de governo sobre as quais "a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função". Guedes disse que apenas sua filha, Paula, movimentou a conta desde que assumiu o ministério, mas ele segue como sócio e, portanto, beneficiário.
2. Autoridade tributária que escapa de tributos
Offshores são abertas (leia mais sobre como funcionam clicando aqui) em busca de discrição, regras flexíveis e tributação baixa ou inexistente. Com a Receita Federal abrigada no imenso guarda-chuva do Ministério da Economia, é uma situação, no mínimo, contraditória. Guedes é o responsável pelo órgão que autua sonegadores e cobra até o último centavo devido por bons pagadores, mas tem boa parte da fortuna protegida do Leão. Também agiu para evitar tributação sobre esse mecanismo na discussão das mudanças no Imposto de Renda. Em julho, afirmou:
– Ah, 'porque tem que pegar as offshores' e não sei quê. Começou a complicar? Ou tira ou simplifica. Tira. Estamos seguindo essa regra.
Outro dispositivo, mantido, reduz a tributação sobre a repatriação de recursos, hoje entre 15% a 27,5%, para 6%.
3. Responsável pela economia ao abrigo de solavancos
A offshore de Guedes foi aberta em setembro de 2014, quando a iminente reeleição de Dilma Rousseff para a Presidência projetava queda na bolsa e alta do dólar. Seria, portanto, um abrigo a solavancos. No governo Temer, quem tinha dinheiro no Exterior teve oportunidade de repatriar recursos pagando apenas 30% dos custos normais (leia mais clicando aqui). Guedes preferiu manter os seus lá fora. Com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, as projeções se inverteram, e os dólares seguiram lá fora. A pergunta mais amigável, nesse caso, é se o ministro não confiou no próprio taco. Dados os resultados, talvez já tenha sido respondida.
4. Imagem internacional
Até onde se sabe, além do Brasil, só Paquistão, Gana, Cazaquistão têm ministros da área econômica citados no Pandora Papers. Mesmo sem autoridades tão emblemáticas envolvidas, as revelações tiveram mais impacto em países desenvolvidos do que por aqui. Um dos motivos é o fato de a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), chamada de "clube dos ricos", defender a tributação sobre ganhos de capital no exterior. A entidade não tem poder de decisão, mas argumenta que é uma forma de coibir evasão de divisas e reduzir a desigualdade social, porque os mais pobres não têm acesso a esse tipo de mecanismo para driblar impostos. O Brasil, puxado pela equipe econômica, quer entrar na OCDE.
5. Ganho cambial
A coluna já observou que Guedes defendeu com muita ênfase a política de "juro baixo e dólar alto", o que virou um constrangimento extra. A cada alta do dólar, agora, surgem projeções de quanto o ministro teria "ganho". Mas é preciso considerar que não houve ganho real, o que só ocorreria se ele repatriasse os recursos e pagasse o imposto devido – o que seria a solução adequada. No mundo de Guedes, fortunas são contadas em dólares, não em reais. Mas é preciso, inclusive, que ele diga e demonstre que não realizou esse lucro.
A íntegra do artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal
(estão com letras mais escuras as partes aplicadas ao caso)
Art. 5º As alterações relevantes no patrimônio da autoridade pública deverão ser imediatamente comunicadas à CEP, especialmente quando se tratar de: I - atos de gestão patrimonial que envolvam:
a) transferência de bens a cônjuge, ascendente, descendente ou parente na linha colateral; b) aquisição, direta ou indireta, do controle de empresa; ou
c) outras alterações significativas ou relevantes no valor ou na natureza do patrimônio;
II - atos de gestão de bens, cujo valor possa ser substancialmente alterado por decisão ou política governamental (alterado pela Exposição de Motivos nº 360, de 14.09.2001, aprovado em 18.09.2001)
§ 1º É vedado o investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função, inclusive investimentos de renda variável ou em commodities, contratos futuros e moedas para fim especulativo, excetuadas aplicações em modalidades de investimento que a CEP venha a especificar.
§ 2º Em caso de dúvida, a CEP poderá solicitar informações adicionais e esclarecimentos sobre alterações patrimoniais a ela comunicadas pela autoridade pública ou que, por qualquer outro meio, cheguem ao seu conhecimento.
§ 3º A autoridade pública poderá consultar previamente a CEP a respeito de ato específico de gestão de bens que pretenda realizar.
§ 4º A fim de preservar o caráter sigiloso das informações pertinentes à situação patrimonial da autoridade pública, as comunicações e consultas, após serem conferidas e respondidas, serão acondicionadas em envelope lacrado, que somente poderá ser aberto por determinação da Comissão.