Sempre que posso, e menos do que gostaria, saio a passear meu pai. Desde que ele se foi, esses passeios são o contato possível. Refaço caminhos que fizemos juntos e as memórias voltam, nossos diálogos voltam.
O problema é que ele insiste em passar por lugares que não existem mais. Quer dar uma volta pela Rua da Praia. Entristecemos por não reencontrar a magia de décadas atrás. Eu aviso que não é mais como era. Ele, mesmo assim, bate pé e quer voltar. Mortos são teimosos.
Tento arrastar-nos para paisagens novas da cidade. Falo da nova orla. Quero levá-lo para conhecer o novo Beira-Rio. Ele, sem ver, diz que prefere o anterior. É inútil, mortos não querem saber de novidades.
O que não nos deixa na mão é o Mercado Público. Andamos pelas bancas saboreando aquela alegre confusão temperada de cheiros. Depois devoramos o mocotó do Naval. A ambrosia vem para sobremesa. Nunca nos entendemos na bebida. Ele é do planeta cerveja, eu do planeta vinho. Andamos mais um pouco e saímos com alguma fruta ou verdura exótica. Levamos figos cristalizados e café recém moído. Sempre a mesma rotina. Mortos são conservadores.
Quando troco de carro ele me ajuda. Imagino suas ponderações sobre as máquinas e acessórios. Ele amava automóveis. Ensinou-me o nome de todos os que rodavam por aqui. De qualquer calhambeque sabia o fabricante e detalhes do motor. Quando encontro uma exposição de carros antigos, só a companhia de sua lembrança faz sentido. Procuro o que ele procurava: um Chevrolet 36 que meu avô teve. É quando nos sentimos mais felizes. Mortos são sentimentais.
Repasso mentalmente as histórias da família antes que o tempo as esfumace. Tento mais uma vez que diga algo da maçonaria, onde ele encontrou-se como só antes no exército, nada sai. Mortos são silenciosos.
Se cruzamos uma igreja já basta para ligar o discurso anticlerical. O tom se altera e sai do português para o italiano. Minha mãe o obrigava à missa. Ele ia, mas ficava do lado de fora, rezando às avessas. Mortos e suas estranhas espiritualidades.
A trilha sonora, quando estamos no carro, fica ao gosto dele. Música brasileira, porém apenas até a Bossa Nova. Bastante chorinho, mas nuns arranjos que não aprecio. O jazz dele até gosto, embora um pouco estridente a la Glenn Miller. Duke Ellington é nosso termo médio. Mortos não viram o disco.
Se os trajetos nos encontram, assuntos não tratados nos separam. Poucas palavras dele sobre meu avô do qual herdei o nome. Carrego o enigma de uma homenagem que se seguiu a anos de afastamento radical. Mortos levam seus segredos.
Habitamos mundos e experiências diversas que não conseguimos narrar um ao outro. Ambos não nos perdoamos pela falta de paciência para contornar certas diferenças. Desconfio que a culpa maior é minha.