Quando o sujeito vai adentrando a terceira quadra da vida, aquela que bordeja os 60 anos, há quatro patrimônios a zelar. A ordem fica a critério de cada um, mas pode-se alinhar na largada a família e os amigos. Mesmo um solteiro convicto há de ter formado um círculo de amizades que lhe querem bem. Uma outra é a saúde, da qual dependem a genética e o estilo de vida nos anos pregressos. Um terceiro é o patrimônio físico, e será suficiente aquele que der condições para usufruir dignamente dessa etapa da existência.
Por fim, mas não menos importante, deve-se acrescentar a biografia, na prática a imagem que outras pessoas foram moldando sobre sua figura dia após dia. Mais que heranças físicas, a biografia é o legado que marcará sua passagem pela Terra, e que será cevado, ignorado ou apagado pelas gerações vindouras. Portanto, é bom cuidar bem dela também.
Posto que biografias são tão importantes, é espantoso que indivíduos que esculpiram carreiras luminosas, não sem sacrifício e dedicação, se sujeitem a incinerá-las em troca da fugacidade do poder. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, é um exemplo dessa legião. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, o antes médico conceituado e boa-praça se converteu à sombra do Palácio do Planalto em um espantalho de sua própria reputação profissional.
Nos primeiros meses no cargo, Queiroga até conseguiu tourear as doidices do chefe, como a recusa às vacinas e ao uso de máscaras. Nos últimos tempos, picado pela mosca azul da política, se rendeu: atrasou deliberadamente a vacinação infantil, se apressou em buscar evidências (falsas) de morte de uma criança depois da imunização e seu ministério inventou uma vergonhosa nota técnica na qual endossava curas milagrosas mas não as vacinas.
O ardil em que Queiroga enterra sua biografia já capturou muita gente boa. É a tal Síndrome de Brasília. Alguém desacostumado às pompas palacianas toma posse em um cargo importante. Sem gastar um centavo, de uma hora para outra ele tem um gabinete de 80 metros quadrados, três secretárias, seguranças e motoristas 24 horas por dia e um jatinho que o leva aonde bem entender. Para culminar, um batalhão de bajuladores lhe sapeca constantes elogios.
Os despreparados ficam extasiados e, para atender ao seu vício, se sujeitam a qualquer coisa. Lembrar sempre que o poder é transitório, que a glória de hoje é o ostracismo de amanhã e que nenhum cargo vale uma biografia - e muito menos uma vida - ajuda muito a preservar as reputações. Dois antecessores do atual ministro conseguiram escapar da armadilha. Já Queiroga se encalacra cada vez mais em uma bolha na qual se esquece até como funciona uma maçaneta, porque há sempre alguém na frente a abrir as portas. Quando for acordado do transe, já poderá ser tarde demais.