Toda essa aborrecida discussão sobre o montante das emendas parlamentares oculta um problemão que é o retrato do Brasil mais atrasado: com que direito os congressistas se adonam de uma fatia cada mais relevante dos impostos pagos pelos contribuintes e a distribuem a bel-prazer? Qual a lógica para que deputados e senadores, eleitos para legislar, passem a agir como governos, determinando a aplicação prática de R$ 186 bilhões entre 2019 e 2024? E que justificativa tem o Congresso, como ocorre no caso do pacote de contenção de gastos, para chantagear o Executivo na votação de algo de interesse vital para o país porque um ministro do STF estabeleceu um regramento sobre o carnaval das emendas?
Como ficou claro nas eleições de 2020 e 2022, candidatos que despejam dinheiro de emendas têm muito mais chances de se eleger do que quem se candidata pela primeira vez
Fosse só uma questão de usurpação de funções de um poder pelo outro, já seria grave. Mas, como todo mundo passou a mexer no queijo dos outros, naturalizou-se a noção de que deputados e senadores devem não só lutar por mais verbas para suas bases eleitorais, mas eles próprios devem conduzir o repasse, no velho e nocivo clientelismo que grassa por aqui desde o Brasil Colônia.
Diante de uma imensidão de carências, é compreensível a ansiedade de prefeitos e líderes comunitários que percorrem gabinetes parlamentares em busca de emendas para atender a demandas locais. E também se entende que, uma vez disponível a bijuja, seria pedir demais a um deputado ou senador que rejeitasse a hipótese de destinar o recurso para a sua base. Nem quem pede nem quem repassa são culpados por uma prática que apequena a política e reforça os currais eleitorais.
O erro está no modelo perverso. Como ficou claro nas eleições de 2020 e 2022, candidatos que despejam dinheiro de emendas têm muito mais chances de se eleger do que quem se candidata pela primeira vez, sem a bolsa gorda dos impostos. Ou seja, além de tudo, as emendas sabotam o equilíbrio entre candidaturas e, portanto, corroem a própria democracia.
Ao ser um atalho para reeleições em série, a farra das emendas produziu uma droga política altamente aditiva. Seu usuário precisa cada vez mais de recursos, e sua abstinência pode lhe custar a carreira. Por isso, o empenho desesperado de Câmara e Senado em manter o fluxo constante e crescente da droga eleitoral. Se essa disfunção estancasse no aprisionamento de governos com cada vez menos poder de governar, já seria muito ruim, mas é pior. Quando uma emenda vai para uma estrada ou hospital, até se entende. É provável que fosse necessário. Mas e quando 26 emendas injetam mais de R$ 90 milhões nos últimos três anos em uma empresa de competições de jogos eletrônicos de Goiás, como noticiou essa semana a Folha de S.Paulo? Tire suas conclusões.