Nunca na história dos golpes militares um levante foi tentado ou aplicado com a justificativa pública de implantar uma ditatura na qual os golpistas, naturalmente, vão se refestelar sem oposição. O manual dos golpistas, seja na Venezuela, na Bolívia, no Mali ou em Brasília, apregoa que o golpe deve ser dado em nome de restaurar liberdades supostamente perdidas. Aliás, nem de golpe o golpe deve ser chamado: é movimento, revolução, luta pela democracia. No momento seguinte, não restará um pingo de liberdade, mas aí já será tarde.
O golpe também não pode ser desfechado sob a noção de que não passa de um consórcio entre confrades sedentos de poder e riquezas. E, claro, tem de ser declarado em favor do povo. Por isso, deve também vir sempre embalado como um apelo popular, ainda que esse apelo ecoe tão somente uma fração minúscula e radical da sociedade.
Como cometem um ato ilegítimo, os golpistas precisam desmantelar as instituições da democracia, como Congresso e Judiciário independentes, e silenciar os críticos, carimbando-os como antipopulares ou traidores da pátria. Para tanto, como no Irã, na Rússia ou na Síria, mandam as vozes dissonantes para a forca, as prisões ou o exílio.
Assim como não tem o menor direito de falar pelo povo brasileiro, o bando de sediciosos que se reuniu nas sombras de Brasília não representa nem de longe as Forças Armadas
Tivessem os kids pretos, com apoio de superiores, sucesso na sua intentona golpista, você, concordando ou não com a coluna, não a estaria lendo porque ela não existiria. O autor, que tem repulsa a ditaduras à esquerda e à direita, quem sabe? Já aqueles que se imaginam estarem vivendo em uma ditadura não poderiam, como fazem hoje, sequer citar a palavra ditadura porque estariam de fato numa.
Há muita coisa ainda por estarrecer na trama golpista do Planalto. Mas uma das mais chocantes é constatar que nós, contribuintes, bancamos por décadas os estudos, a alimentação, a saúde, a farda, o soldo ou a pensão da reserva para que um grupelho se arvorasse de defensor do povo e das liberdades — tais como os golpistas de opereta das repúblicas bananeiras — e se achasse no direito de assumir na marra as rédeas da oitava economia do mundo.
Justiça seja feita. Assim como não tem o menor direito de falar pelo povo brasileiro, o bando de sediciosos que se reuniu nas sombras de Brasília não representa nem de longe as Forças Armadas. Aliás, está cada vez mais claro que a larga maioria da cúpula militar desativou os delírios que pairavam sobre o Planalto e se infiltravam nos desvãos das forças especiais. Esse grupo de oficiais-generais, vilipendiados com suas famílias sob orientação do ex-colega Braga Netto, entrincheiraram-se contra o desatino. Enxerga-se com mais nitidez agora, não importa quem tenha sido eleito, como foi decisivo eles terem ficado do lado certo da história.