Há 30 anos, no caótico desmanche da União Soviética, entrevistei uma velha senhora em uma fila em Moscou, de pé na calçada sob uma chuva gelada, esperando a vez de comprar o pão racionado. A certa altura, perguntei que político ela admirava. “Stalin, porque naquela época havia bombons”, respondeu, para meu espanto, ao citar uma figura que a própria historiografia soviética retratava como um crápula que levara dezenas de milhões à morte pela fome e nas prisões.
Como no caso da babushka russa que tinha fantasias com bombons, o presente penoso do Brasil borra as agruras do passado. Na virada para um ano eleitoral, o país poderia estar discutindo os projetos de futuro, mas nem sinal deles. Foram substituídos pelo embate entre dois líderes nas pesquisas que fazem da nostalgia a catapulta de suas popularidades.
Lula reentrou na arena política com a promessa de reviver uma era em que se imaginou o Brasil no primeiro mundo, se saudou a escolha como sede de Copa do Mundo e Olimpíada e se registrou a saída de milhões da linha de pobreza. Para outros milhões, a memória se esboroou sobre aspectos sombrios dos governos petistas, como a corrupção desenfreada, o aparelhamento do Estado, o crescimento da criminalidade e o desastre econômico produzido pela sucessora.
Já Jair Bolsonaro se elegeu na onda de outro falso Brasil perdido – o da suposta tranquilidade nas ruas no regime militar, de um duvidoso “cidadão de bem” pela visão conservadora e moralista, do patriotismo a serviço da ideologia e do combate a corruptos e bandidos. Poucos eleitores de Bolsonaro enxergam o fato de que o Brasil desceu a ladeira interna e externa nos últimos anos e que os governos militares, além de garrotearem as liberdades, legaram a dívida externa explosiva, a inflação descontrolada e uma constelação de estatais que até hoje sangram o país. E, sim, havia crimes e corrupção naquele passado.
O olhar benevolente sobre os dias de antanho também decorre de um cotidiano sobressaltado por disrupções tecnológicas, econômicas e comportamentais que deixam muita gente assustada. Em nenhuma outra eleição, essa angústia ficou tão evidente como no mote da inacreditável vitória de Donald Trump - “Make America Great Again”. Evocava uma quimera e entregou um assalto à democracia.
Bem antes da internet, as urnas do saudosismo haviam reconduzido Getúlio Vargas. Esqueceu-se o ditador, elegeu-se o populista ao som da marchinha “Bota o retrato do velho outra vez/Bota no mesmo lugar”. O novo mandato acabou em uma sucessão de escândalos e no suicídio, que abriu uma crise que se ramificou anos à frente. As frustrações não deviam ser uma surpresa, porque na vida e na política há muitos retrocessos, mas o passado, fugaz e idealizado, jamais volta.