O fim do julgamento da Kiss delimita a passagem de capítulos de um livro que permanecerá para sempre aberto, mesmo que daqui a muitas décadas, como ocorreu com o Titanic, a I Guerra Mundial e tantos outros horrores de impacto global, seus últimos sobreviventes já não estejam mais aqui. Diante de circunstâncias terríveis, muitas cidades, em vez de buscar o esquecimento do horror, expõem suas nódoas, viram modelos para que tais cataclismos nunca mais venham a se reproduzir e extraem desse sofrimento passado um vigor renovado para mirar o futuro.
A hoje pacata e próspera Dachau, na Baviera, por exemplo, preserva o campo de concentração que a manchou como um monumento para se debruçar sobre a estupidez, a crueldade e o absurdo do Holocausto. Devastada pelo primeiro bombardeio atômico, a moderna Hiroshima criou um Parque da Paz e mantém esqueletos de prédios destruídos como símbolos do risco de um apocalipse nuclear. Na linha oposta, Bophal, na Índia, até hoje não se encontrou com seu passado, 37 anos após o vazamento de gás tóxico de uma planta da Union Carbide ter matado 3,7 mil moradores. Os responsáveis receberam sentenças irrisórias, não houve indenização aos sobreviventes e a fábrica é apenas um complexo abandonado.
Santa Maria – e o Rio Grande do Sul – poderiam, portanto, tomar duas iniciativas em relação à memória da tragédia da Kiss. A primeira seria finalmente erguer no local da casa noturna um memorial às vítimas para que, assim como ocorre no antigo espaço das Torres Gêmeas, em Nova York, se faça uma devida homenagem aos 242 mortos e sirva de reflexão sobre a origem evitável de tragédias do gênero.
A segunda exige um esforço mais amplo. Santa Maria poderia se transformar em referência internacional em segurança pessoal e coletiva. A cidade já mostrou ser capaz de mudar maus hábitos arraigados no Brasil, como o desrespeito às faixas de pedestres. Agora, desde que sem amarras em legislações inexequíveis, poderia inovar e aprofundar práticas de segurança. Algumas possibilidades: ensinar todas as crianças a nadar e evitar afogamentos, equipar os bombeiros com o que há de mais moderno e eficaz na fiscalização de prédios e na prevenção e enfrentamento de acidentes e incêndios, e disseminar e treinar organizações voluntárias de defesa civil para toda sorte de desastres e catástrofes.
Essas são apenas algumas das muitas janelas que se abrem para Santa Maria. Antes de ser lembrada no Brasil e no mundo como palco de uma das maiores tragédias do século, a cidade que está no coração de todos os gaúchos pode se converter em exemplo definitivo de que a segurança precisa vir sempre antes de qualquer outra prioridade.