Enquanto o mundo se distrai com a frente de combate à Ômicron, a ameaça de invasão da Ucrânia pela Rússia vai muito além de resquícios da soberba comunista em relação a territórios que Moscou sempre considerou como províncias. As estepes da Ucrânia são agora uma nova encruzilhada da geopolítica mundial que pode redesenhar o mapa da hegemonia global nas próximas décadas.
Na superfície, a concentração de mais 100 mil militares russos na fronteira ucraniana é uma extorsão para que a Ucrânia jamais venha a se unir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). No plano interno, porém, Vladimir Putin encontrou uma causa de união nacional – a defesa do povo russo – contra seus muitos adversários e fracassos na economia. Mas é no plano externo que o autocrata russo vislumbra a oportunidade de reescrever a história ao unir, sob um mesmo teto de alianças contra democracias ocidentais, a China e ditaduras desgarradas, como o Irã, Belarus, Myanmar e Síria (essa já quase um enclave russo no Oriente Médio) para se contrapor à balança de poder dos EUA e da União Europeia.
O povo ucraniano, a quem aprendi a admirar e respeitar, é a bucha de canhão nessa disputa de poder. Na primeira vez que estive na Ucrânia, em novembro de 1991, às vésperas do referendo que apoiou maciçamente a independência, já estava claro que ali surgia uma nação poderosa e orgulhosa de suas raízes e cultura. Na segunda vez, em junho de 2013, testemunhei protestos contra o marionete-presidente Viktor Yaunukóvytch, que acabaria derrubado meses depois. Nas duas ocasiões, o desejo de liberdade e autonomia não era um discurso vazio, mas um sentimento profundo dos cidadãos comuns que almejam seu futuro integrados a uma Europa liberal, democrática e unificada.
Ainda que um quinto da população tenha ascendência russa, a Ucrânia não é, como viam o império soviético e agora Putin, uma extensão do Kremlin. Do tamanho de Minas Gerais, a Ucrânia tem potencial para ser uma das democracias mais prósperas e poderosas da Europa – e é essa comparação que incomoda Putin, já confrontado com o extraordinário desenvolvimento das ex-repúblicas bálticas, membros da EU e da Otan. Em 2021, registre-se, a Rússia teve um PIB menor do que o do Brasil ou da diminuta Coreia do Sul.
Putin faz seu jogo em um momento de fragilidade do Ocidente. Troca de governo na Alemanha e crises políticas na França, Alemanha e Itália, combinadas com a pandemia e uma presidência ainda titubeante nos EUA, formam uma janela difícil de se replicar. Somem-se manobras conjuntas com a China, as renovadas exigências de Pequim sobre Taiwan e seu soft power sobre África e América Latina, e tem-se então o caldeirão onde ferve a nova geopolítica. A questão não é se, mas como e quando, serão barrados Putin e suas políticas democraticidas.