Não tenho conseguido trabalhar, então, pedi ao pessoal da redação que escolhesse por mim textos antigos. Hoje resolvi arriscar, usando trechinhos de que gosto e quis dividir com meus leitores, meus amigos imaginários, assim retomo essa atividade que desde sempre eu amo.
Menina à beira da tarde, à margem do silêncio, no terraço que podia também ser um penhasco sobre o mar. Na imaginação de uma criança pouca coisa se divide entre real e irreal/ O arvoredo-mar rosna, rosna. Os talos de capim roçam uns nos outros com um ciciar de espumas.
A voz dos sapos fazendo renda para o casamento, o clique-clique da tesoura de podar também corta a língua das crianças mentirosas, a água da torneira no tanque, os passos na escada, o marulho das ramagens ou das algas – tudo infinitamente o mesmo mar. O mar de dentro, de onde ela nasceria a cada momento, intensamente.
A criança na margem ou no terraço sente o que está vindo por cima das árvores e das águas, no calafrio do iminente e o quase: vem, vem, vem, vem, o monstro vem e se chama tempestade . Raspa no céu os cascos gigantes e logo vai derrubar tudo a sua passagem, com estrondo.
Um fio apenas separa o agora da catástrofe: lâmina de silêncio tão precisa que entra no corpo e fura a alma de uma menina paralisada de beleza e medo. Ela fecha os olhos e inspira aquele odor – de maresia e terra molhada –, ah, engolir tudo aquilo e fazê-lo seu. E ser tudo isso, sem limites nem restrições.
Silêncio de se ouvirem as agulhas dos bordados das mulheres dentro de casa.
O céu se fende, o mar se alteia, mil tons de verde, as corcovas de água fazem ondular as ramagens. Sensação como de acordar de madrugada sem medo, e ninguém na rua nem na casa, só ela, sozinha – rara felicidade da autonomia sem receio de isolamento e separação.
Tudo oscila sob uma trovoada mais forte, a bola de madeira que São Pedro lança para derrubar estrelas de vidro. Aqui e ali, alguém arrasta no céu poltronas eternas; os passos do Velho golpeiam as nuvens.
Por fim tudo se fragmenta em mil cristais, desce retinindo sobre o jardim, gotas isoladas nas folhas e nas lajes. Depois a chuvarada vem lavar o mundo.
De dentro da casa flutua a voz de minha mãe:
– Entra, não está vendo que vai chover? Um raio vai te atingir, entra!
Fingindo não ter ouvido, eu sabia que agora ela dizia a uma das empregadas:
– Essa criança está sempre no mundo da lua.
Ela entra correndo, e pergunta, mãe, como é o mundo da lua?
A mãe, como tantas vezes, levanta os olhos pro céu e não responde.