Lya Luft

Lya Luft

Cronista, romancista, tradutora e autora do best-seller "Perdas & Ganhos", Lya Luft escreveu semanalmente em ZH. Natural de Santa Cruz do Sul, Lya faleceu em Porto Alegre, em 30 de dezembro de 2021. Suas crônicas seguirão disponíveis em GZH.

Cotidiano

Sobre amor e morte

As palavras riem dos poetas, pois são livres: nós, mediação incompetente. Porque vemos pouco, vemos insuficiente, vemos errado, plantados num ponto cego

Lya Luft

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O mar dos meus amores é turvo de desencanto. Não é azul nem verde: é marinho.

Na crista do sonho, um raro gesto faz desmaiar sereias no mar das minhas dores, escuro do naufrágio do mundo. O cavalo da espuma deixa pelo caminho a luz dos momentos que são mais que muito: são tanto e tão fundo.

O que não posso dizer, o que não cabe em palavras, o que não é para olhares profanos; o que é calado e remoto, meu mais secreto destino como o reverso das ilhas; maremoto mar marinho calado alado e sonoro: mais que navego, imagino.

Pintei o cenário, varri a plateia, arrumei os bastidores. No camarim, frutas e champanha: eu seria a personagem principal.

Depois me sentei no palco. Repassei minhas falas, provei minhas fantasias – e me pus a chorar: nada fazia sentido, nada era meu. (Eu não era eu.)

Viver é todos os dias partejar a vida. Ela nasce com cabeça grande demais, muitos braços. 

(Às vezes sem pernas.)

Abro meu ventre e minha alma se arreganha como o corpo de uma parturiente. Dar à luz dói e faço isso todos os dias: abro os olhos para a manhã no quarto e começo a parir. Mas nem tudo é ruim. Posso escolher o sexo e a cor dos olhos de cada momento. (Mas nem sempre.)

A parte dura desta humana lida é dizer sim na hora do não, escolher mal entre silêncio e grito, entre a noite e a explosão do dia; ceder quando devíamos negar, dizer não em lugar de afirmar, partir quando era bom amar, fechar-se em vez de abrir a alma toda, e confiar. Sermos tão incertos e indecisos, perdendo o trem, a hora, o agora – mas a gente não sabia.

Então sento-me aqui, neste refúgio, abro a gaveta, e salta uma palavra: dança sedutora sobre o meu cansaço, veste-se de indefinições, vagueia no labirinto das ambiguidades. Acha graça de mim, que espero à frente encontrar a solução dos meus enigmas. Tento uma geometria que a contenha no espaço entre dois silêncios quaisquer, mas ela decide meus passos: peso de fruta no sono da semente, assiste à minha luta quando a desejo aprisionar e, às vezes, até finge que sou eu a senhora, a domadora, a fonte.

Quando entre as almas estarrecidas de se precisarem tanto só restar a dimensão da pele irredutível; quando bocas mastigarem as raízes da paixão; quando não se distinguir o dar do receber; quando entre um e outro desejo se altear o derradeiro grito da consciência e a solidão tranquilamente vier se desnudar: não haverá mais que anjos delirantes e tristes, amando-se infinitamente pelos cantos, a chorar.

As palavras riem dos poetas, pois são livres: nós, mediação incompetente. Porque vemos pouco, vemos insuficiente, vemos errado, plantados num ponto cego.

(O ponto cego é um fenômeno da visão humana segundo o qual, conforme convergência e refração, pode-se ver o que habitualmente permanece oculto: a possibilidade além da superfície, o concreto afirmado na miragem. Assim eu inventei, assim eu decretei, assim é. Isso, para mim, é arte.)



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