Aí a gente acorda, pelas vidraças percebemos que está mais escuro do que deveria nesta época do ano: para quem, como eu, ama chuva, trovões e a sensação de abrigo que isso me dá – porque ando presa em casa –, maravilha.
Quando precisava ir à escola, em criança, e patear na lama vermelha da rua ainda não calçada na frente de casa, eu odiava. Mas agora, reclusa, vejo com certa alegria que vai chover. Seguidamente, aliás, quando mais aborrecida ou inquieta, me pego pensando, “se ao menos chovesse”.
Nem eu sei que ritual psíquico remoto isso significa, mas é real. Claro que aí também penso nos pobres, nos desalojados, nos removidos de suas casas, nas aflições do mundo em geral, coisas que desde menina me atormentam. “Essa guria pensa demais”, era uma das coisas que diziam de mim, além de “está sempre no mundo da lua” e “não aprende disciplina”.
Mas o consolo que a chuva me dá, esse é verdadeiro e me faz um bem danado nestes tempos, repito, mais do que esquisitos. Vários amigos doentes; um ou outro entubado; um, queridíssimo, que chamo irmão, com sequelas permanentes, no Rio. Muito me ajudou, me salvou, mas agora, se pudesse decidir, talvez quisesse ir embora para esse lugar que ninguém sabe o que é, mas todo mundo espera que seja pelo menos melhorzinho.
Como disse Sócrates, quando mulher e discípulos se desesperavam ao seu redor, ele tendo de beber cicuta (porque afinal a democracia nem entre os gregos foi perfeita): “Por que estão chorando? Se morrer for um sono sem sonhos, que bom. E se morrer for reencontrar os amados que já se foram, que bom”.
Não estou escrevendo sobre morrer, ou, como já escrevi em algum poema, sempre que digo morte, falo na vida. Então, por favor, há que viver direito, ao menos decentemente. Difícil, meio isolados. Difícil, preocupados com as pessoas queridas. Difícil, sem uma boa perspectiva para o fim da Peste do milênio, e com gente ainda achando tudo isso bobagem.
Mas há que viver, mesmo com o pai da Mafalda morrendo, 88 anos não está mal, e tanto de bom, inteligente, engraçado e verdadeiro nos deixou. Mesmo o pai da Mônica sendo injuriado com uma tirinha fake e besta, Mônica com piupiu de fora. Mesmo com gente incendiando de propósito um pedaço de floresta: mostraram claramente um imbecil criminoso caminhando pela beira da mata ressequida, puxando atrás de si o que parecia um trapo inflamado e tocando fogo nas macegas.
Há que viver e querer ser decente, direito, não bobo, mas um pouco otimista, nunca amargurado demais porque amargura contagia todos ao redor, mau humor da mesma forma. Não que a gente deva fingir, mas levantar o queixo, respirar fundo, pensar que, como dizia meu pai quando eu reclamava em criança “na guerra é muito pior”, e torcer para que, além da guerra dos insultos, burrices, notícias fake e pequenas grandes maldades, as coisa não piorem ainda mais por aqui.
A gente precisa acreditar que, mesmo nas partes mais remotas, mais sofridas, não existe só deserto de árvores e gentes, mas que as gentes sempre vão acorrer, as árvores reflorescer –, se não formos demais ignorantes, metafisicamente burros, e permitirmos que as coisas, afinal, endireitem.