Parece que muitas vezes, ao parar para pensar, imaginamos qual será o sentido da nossa vida. Seguidamente, aliás, se comenta o assunto: qual será o sentido de tudo isso?
E todos ficamos com ar meio perplexo. Vamos lutar por ele, produzir ou descobrir um pequeno significado a cada momento. Pois isso não nos é dado de bandeja, a vida não aparece e diz: “Olha aí, esse é o sentido de tudo”.
Além do mais, cada um de nós é vários, é muitos, é pelo menos dois. Uma amiga me relatou um sonho há muitos anos: sonhava que corria por um campo e de repente foi atingida por um raio que a partiu em duas. Duas mulheres idênticas corriam pelo campo agora, mas em direções opostas.
Além do mais, cada um de nós é vários, é muitos, é pelo menos dois.
Todos somos, mais que dois, muitos: muitas indagações, muitos desejos, muitas condutas, muitas frustrações. A toda hora vestimos máscaras, belas e irreais como as de Veneza, ou grotescas como caretas de choro ou sofrimento. Não é hipocrisia: é um modo de nos preservarmos, um jeito de sobreviver e merecer vida – e sobrevida, que às vezes é o que nos resta.
Tenho em minha sala um quadro despretensioso com moldura estreita e simples, no verso da qual a autora assinou apenas seu sobrenome: “Grauben”. Sei que era já de avançada idade quando começou a pintar. Não tenho maiores informações sobre ela (gostaria de ter). É uma pintura ingênua e pontilhista: um jardim com duas árvores floridas, no meio um banco onde se senta uma menina com sua boneca. Ou é uma jovem mulher com uma criança.
De cada lado dessa mulher há um gato: o preto senta-se a seu lado direito no banco; o branco está no capim do lado esquerdo. Arte cada um interpreta como pode, mas para mim ali se representa a psique, a do adulto e a da criança que sobrevive em nosso inconsciente; e de cada lado aparece isso que somos de bom e mau, livre e prisioneiro, em suma a força da vida e a pulsão da morte.
No quadro, a “pulsão da morte” está mais próxima, sentada no banco do lado direito daquela mulher com a sua reprodução, dela parida, boneca ou criança. E estende-a um pouco afastada do corpo, como para mostrá-la a nós, indagando: “Qual delas sou realmente eu?”.
Genes e acasos, experiências, tantas, foram me desenhando traço a traço com a minha destinada vida, e com a minha destinada morte pacientemente à espera. Construí com essa argila, tramei esses fios, bordei, pintei, esculpi com alegria e lágrimas, descobertas e afetos incríveis, no trabalho das horas de viver uma vida.
Quando tiver cavado todas as palavras da mina do silêncio, vou poder com elas fazer muitas telas, quadros mínimos ou grandes painéis, que nada resolvem mas vão continuar indagando. Embrulho tudo em palavras e amarro em intervalos, e deixo em textos para o leitor, meu amigo não muito imaginário – que procura seus significados como eu procuro os meus: ou, como eu, os inventa.
Mas também penso, em certas horas de leve ironia, que somos sérios demais: que muito melhor seria corrermos livres pelo campo, ou pela areia, espantando garças ou quero-queros só pela alegria de seguir seu voo.