Leitores e Zero Hora hão de me perdoar se, na primeira vez em que me sento diante do computador depois que a Senhora Morte não me quis, eu reproduzir aqui trechos de meu livro A Casa Inventada, de dois anos atrás.
A vida precisa de uma porta para espiar o que há dentro: um corredor, o espelho e suas criaturas, a sala da família e um claro quarto, de criança; um porão de aflições que soluçam à noite (mas dizemos: é o vento); um pequeno jardim com três árvores esguias. Num resto de muro, a escada de madeira parece não levar a nada. (Pousado no último degrau, um pássaro de sombra me observa: seu bico é curvo e afiado.)
A porta da frente nos atrai como alguém chamando vem, vem, vem. Curiosidade: o que haverá atrás daquela porta entreaberta mesmo em tempos inseguros e violentos: quem a esqueceu assim? Quem a abriu e vai sair agora? Ou está entreaberta para receber minhas ansiedades? Mas, se eu a criei, como posso não saber?
Invento a secreta casa: beleza e crueldade, o belo sinistro, a vida. Uma casa pode ser um labirinto, porque a gente anda em círculos, procurando a saída, que saída, onde, quando, como? À noite, vendo as luzes da cidade, nunca deixo de imaginar aquelas vidas. O que fazem, dizem, pensam, saboreiam ou sofrem? Quanto deliram, quanto desistem? Uma casa se oferece diante de nós como a alma de alguém: o poeta Rilke, na minha cabeceira, diz: “A alma do outro é uma floresta escura”.
Uma casa se projeta com ciência e fantasia; e deve se erguer sobre um fundamento firme. Uma boa casa, que durasse anos ou eternidades. Que perdurasse na memória até depois de desabar. Até se fechar a pálpebra da vida – e tudo ficar tranquilo. Construímos com nossa carne e pensamento cotidiano. Êxtases ou tragédias são tijolos frágeis, cuidado.
Se a casa se completar, a vida terá vencido, ainda que a gente só perceba isso no último instante
Sangue, lágrimas, risadas, esperanças, punhais enterrados no peito, tiros nas costas, carícias maternas ou sensuais, e a necessária alegria. Com sorte superamos as fatalidades: o solo arenoso, o terremoto, o raio, a inundação, a enorme pedra no caminho, as falhas dos operários, nossos próprios erros e desesperos, e pequenas glórias.
– pois nunca sabemos se está terminada. Como ninguém conhece os prazos de validade ou de esperança, tudo é muito secreto. Melhor para nós, amadores.
Atravessei todos os aposentos, e cansei dessa andança no esforço de continuar viva. Desço para o minúsculo jardim. Chego junto da escada encostada no muro, e que parece levar a lugar nenhum: quando levanto os olhos, lá em cima está aquele pássaro esquisito, entortando a cabeça como fazem os pássaros, afiando seu bico contra a madeira. E me espia.
Então, já de pé no primeiro degrau, desisto de subir, de saber o que existe por lá.
Ainda posso celebrar, com lágrimas ou com espumante, o movimento dessa engrenagem de que somos parte, e que, apesar dos adeuses, se chama – mais do que morte – vida.