Não sei, em minhas tantas memórias que curto e com que me divirto, se gostava de ser criança.
Gostava de nossa casa, do jardim imenso, do laguinho no fundo, do pomar (mas tinha de lavar a fruta antes de comer...), dos canteiros de flor, um deles só de rosas de minha mãe, gostava da casinha de meus avós paternos logo adiante, do casarão dos avós maternos no centro da cidade. Gostava da chuva no telhado ou nas lajes do pátio, de meus pais, meu irmãozinho, das empregadas, de todo mundo. Gostava de tudo, da vida, do mundo, embora nem soubesse o que era isso.
Então, fui uma criança feliz numa casa amorosa e alegre. Claro que havia meus medos, minhas imaginações, sempre a mil; havia eventuais impaciências de meu pai por eu desobedecer à mãe, e as implicâncias maternas por minha enorme dificuldade de ficar quieta na hora de ficar quieta, sobretudo parar de fazer tanta pergunta. Lembro de minha mãe, mãos nas têmporas, dizendo em alemão, pelo amor de Deus, menina, para de fazer tanta pergunta, já estou ficando tonta. Vai falar com seu pai.
Criança não pensa, e criança fica quieta, eram uns lemas tão distantes para mim quanto as nuvens, as estrelas.
Criança não pensa, e criança fica quieta, eram uns lemas tão distantes para mim quanto as nuvens, as estrelas. Criança fica quieta às vezes, e era maravilhoso: embalada na rede do terraço, olhando os morros azuis, deitada na grama imaginando figuras nas nuvens, ou vendo algum anjinho gorducho saltando de uma nuvem para outra.
Criança, eu acreditava em tudo, já escrevi várias vezes que, talvez vergonhosamente, acreditei em cegonha até quando num grupinho de amigas, então já com uns sete anos, tentaram me explicar qualquer coisa horrenda sobre um caninho de borracha em que um bebê minúsculo passava do pai pra mãe... achei a cegonha bem mais plausível.
O que eu não gostava nisso de ser criança eram regras, obediência, conselhos. Senta direito. Não fala com boca cheia. Apaga essa luz e dorme de uma vez, chega de ler. Vai lá fora brincar no sol, você vai ficar burra de tanto ler. Olha o jeito com que fez sua cama. Olha esse bordado todo repuxado. Para de rir por qualquer bobagem. Vem, vamos fazer umas visitas: me assustava visitar um tio-avô em cadeira de rodas, nariz adunco, olhos de pássaro, com quem todo mundo falava aos gritos. Levou tempo até me explicarem que o pobre era surdo, mas não perdi o medo dele.
O que eu queria mesmo, na infância, era crescer. Adolescente, adulta, dona de meu pobre nariz e de minha vida, minhas escolhas. Lá, naquele ponto ainda distante, ficava um quase-paraíso na minha fantasia tão ingênua. E as contas a pagar? E os trabalhos a realizar? E os filhos a educar (sendo essa de filhos sempre a melhor parte), e a profissão a escolher, e se a gente não der pra coisa nenhuma – como por muitos anos pensei sobre mim mesma, já adulta? Rio sozinha lembrando que, depois de por muitos anos ouvir de minha amorosa, preocupada mãe, que "criança não pensa", escrevi, ilustrado pela minha filha Susana e com colaboração de meu filho Eduardo, um livro infantil, Criança Pensa.
No fundo, como me disse um dia meu amado amigo e compadre Erico Verissimo, às vezes o humor é mais importante do que o amor.