Por que não começar citando Borges: “Por que brota de mim – quando o corpo repousa e a alma fica a sós – esta insensata rosa?”.
Talvez seja uma boa resposta – ou proposição de novo enigma – para a pergunta tão comum sobre a inspiração. De onde ela vem? Como aparece, de que lugar obscuro emerge, ou cairá dos céus?
Nunca encontrei resposta certa, mas essa frase de Borges me parece adequada. Não sabemos a resposta, eu não sei, talvez não haja. O termo “inspiração” já desperta alguma suspeita de quem trabalha com arte, seja ela qual for: música, pintura, escultura, literatura, teatro, dança, não importa. Pois nem sempre estamos bem dispostos (alguém diria “inspirados”), mas em geral temos de prosseguir no trabalho. Há trabalhos que precisam ser feitos, mesmo tratando-se de arte, um pouco mais complexa do que engenharia, economia e outros – ou não –, ainda que não tenham nos dado duros prazos, ou prazo algum. Posso parar por algumas horas, dias, e – pelos muitos anos de experiência – sei que, se for bom para meu livro, a vontade, o encantamento, a palavra ou frase, o personagem, voltarão no lugar certo, na hora certa.
Mas não há garantias, é sempre um passeio à beira do abismo.
Gosto de emprestar, nesse assunto, o episódio descrito por Marguerite Yourcenar: ela escrevia um texto, absorta, sobre a morte de Zenon, para seu livro, quando chega o encanador para consertar algo na pia. Marguerite levanta, ele entra, conversam um pouco, ele faz seu trabalho, ela paga, ele senta a convite dela e conversam mais um pouco. Yourcenar e sua companheira moram num lugar remoto, nevava lá fora, e o trabalho do encanador era importante. Ela lhe oferece café e o pão que tinha assado naquela manhã.
E, quando o encanador se vai, diz ela, maravilhosamente: “A morte de Zenon continuava lá, à minha espera”. A frase dela me parece gloriosa e verdadeira, e nos dispensa, a nós artistas, de dar com muita facilidade essa desculpa “não me veio inspiração”. Acho fácil demais, preguiçosa demais, simples demais, essa explicação. Em geral, não ficamos aéreos aguardando que algo suba de nossas entranhas ou desça das nuvens, a não ser em alguns necessários e meio inexplicáveis momentos. Além disso, falo por mim, pois cada escritor, ou outro artista, tem seu jeito, suas maneiras, recursos, hábitos e chatices.
Queremos a frase melhor, a curva melhor, o som mais precioso, o gesto mais expressivo, ainda que nos pareça, muitas vezes, nosso absoluto fracasso e total ruína.
O que funciona é um encantamento com uma palavra, um rosto, um drama, um fato qualquer. E aquela criatura, humana ou não, começa a ter corpo, sofrimentos, felicidades: e a gente se apaixona, e inventa uma paisagem interior, talvez também externa – e escreve.
E trabalha: arte é trabalho, às vezes duro, exaustivo, que nos exalta ou abate, em que acreditamos ou desacreditamos, mas – operários que somos – continuamos a exercer. Queremos a frase melhor, a curva melhor, o som mais precioso, o gesto mais expressivo, ainda que nos pareça, muitas vezes, nosso absoluto fracasso e total ruína.
Além da dura lida, importa, sim, aquela insensata rosa que desabrocha quando menos esperamos: além dos ruídos, das tristezas, das euforias, e das cotidianas chateações. Inspiração, quem sabe, existe.