Por um mecanismo fácil de descrever, sempre esqueço desses dois verbos, lacrar e cancelar, quando quero me referir a duas práticas comuns no universo das redes sociais – a lacração e o cancelamento.
Se o prezado leitor não sabe, lacrar é uma hipérbole para descrever a vitória que ocorre mediante uma afirmação definitiva, uma intervenção vencedora numa – como chamar? – conversa, numa disputa, no Facebook ou assemelhado. Lacrar é o ponto mais extremo de “dar nos dedos”: não há mais o que dizer, é triunfo completo.
A leitora pode não saber, então explico: cancelar é o equivalente de lacrar mas numa atitude ainda mais forte. Impede o cancelado de continuar se mexendo, se movimentando, se manifestando, no contexto. Pode-se cancelar atacando em massa uma postagem, bloqueando o sujeito, deixando de ser amigo dele etc.
Passei por uma experiência breve mas significativa a esse respeito uns meses atrás. Havia dado uma entrevista para o Luiz Rebinski, do jornal Rascunho, de Curitiba, acerca de tópicos relativos ao meu livro, lançado em 2021, Duas Formações, uma História (editora Arquipélago). Expliquei coisas, desdobrei reflexões e, ao final, o entrevistador me perguntou quem eu andava lendo de escritores contemporâneos brasileiros. Alinhei uns nomes, que me vieram sem muita escolha racional.
Ocorreu que um desses escritores recortou, de boa fé, a resposta e a postou no Facebook. Bá. Nos dias seguintes, dezenas, talvez algumas centenas de pessoas entraram na postagem para me acusar de tudo e mais um pouco: ter deixado de citar uns e umas, mulheres ou lgbts, indígenas ou negros etc, no fim das contas, de não ser confiável – estou usando aqui de eufemismos, para não poluir o breve momento desta leitura, que agradeço.
Alertado por um amigo, fui ver a postagem; me apavorei. E tive ainda a infeliz ideia de fazer uma postagem em defesa de mim mesmo, quando havia apenas poucos insultos. Disse que por favor considerassem que aquilo era apenas um final de entrevista, contra uma trajetória de mais de 30 anos de crítica literária em muitos veículos de imprensa, mais a sala de aula etc. Não adiantou nada. Dormi mal essa noite.
Depois tive uma decisão que me ajudou a conciliar o sono: parei de ver a enfiada de ironias finas e grossas, deboches variados, lacrações e cancelamentos seguintes. Era uma tentação, uma curiosidade, um pouco mórbida, mas resisti. Foi quando me dei conta dos ecos fonéticos entre três verbos: lacrar, cancelar, calar.