O óbvio é pensar que o futuro é uma construção — ao menos para quem tem liberdade e meios. Mas o passado também é fruto de ação humana: o que se sabe dele é o que se pensa dele. Certo, passado também é herança, na memória oral, nos documentos e nos monumentos. Mas nada disso é pacífico: memória mistura desejo e esquecimento, e os documentos e os monumentos aparecem e desaparecem, são restaurados ou destruídos, também eles se movem. Nada a estranhar.
Ponhamos nessa conversa uma data, o 13 de maio de 1888. Todo mundo sabe que então foi assinada a Lei Áurea, que libertou alguns milhares de seres humanos que ainda eram considerados legalmente escravos. Atenção para o advérbio: legalmente. Não bastasse o horror da condição abjeta a que é relegado o escravizado, ainda por cima havia leis que atestavam ser correto, adequado, de acordo com a lei, enfim.
Estou rodeando o tema, porque ele mobiliza discussões relevantes. Ao que se sabe, partiu de um grupo porto-alegrense, liderado pelo poeta e professor Oliveira Silveira, a proposta de contrastar as comemorações do 13 de maio com outra data, que recaiu sobre o 20 de novembro, da morte de Zumbi.
Ocorre que acaba de sair um livro de enorme valor, O 13 de Maio. A edição não podia ser melhor, na forma e no conteúdo: trata-se de contos do escritor Astolfo Marques (maranhense, 1876 a 1918). As notas e o prefácio, excelentes, são de Matheus Gato; a editora é a ótima Fósforo.
O conto que dá título ao livro saiu em jornal, em 1905, e flagra a conversa entre duas mulheres, ambas alforriadas antes da Lei Áurea, que expressam sua indignação com o fato de que a data deixava de ser festejada. A conversa entre elas é um excelente documento de registro de mentalidades do tempo — elas comentam criticamente o fato de que conhecem pessoas que foram libertadas no 13 de maio mas divulgam outra versão, de que teriam sido alforriadas na pia de batismo. Distinção social num contexto agora quase inimaginável.
O que está em jogo é a obra de um escritor de valor, que até há pouco era solidamente desconhecido e agora é reposto em circulação, em grande estilo.