Ainda é muito cedo para cravar que as SAFs já deram certo aqui no Brasil. Mas já é possível dizer que este 2022 que começa aqui no sul do mundo com calor do Saara será um marco, um divisor entre o ontem e o amanhã no nosso futebol. As estruturas, podem ficar certos, começaram a mudar. Talvez leve algum tempo ainda, mas a transformação pela qual já passa o Cruzeiro, e que o Botafogo aceitou passar, é o primeiro passo de uma revolução. Logo ela chegará a temas enraizados, como calendário, criação de liga e mentalidade coletiva entre os clubes.
É possível, sem qualquer resquício de medo, vestir-se aqui de Nostradamus e prever que o futebol brasileiro mudará a partir das SAFs. Isso porque o olhar empresarial e de negócio sentará à mesa e dividirá espaço com o modelo vigente, nutrido por paixão e, sim, egocentrismo dos dirigentes. As discussões nas reuniões dos clubes serão pautadas pelo ganho coletivo, pelo crescimento sustentável e por um olhar mais atento ao produto final. Se todos ganham, todos crescem. E, se todos crescem, o jogo fica mais atraente, a disputa se torna mais emocionante e, principalmente, o fluxo de caixa se torna mais espesso.
Retomada
Para clubes como Cruzeiro e Botafogo, com dívidas na casa do bilhão, a chegada das SAFs virou a salvação. Era isso ou a falência, a perda de status. Não será de hoje para amanhã que o Cruzeiro voltará a se ombrear com o Atlético-MG. Levará algum tempo esse reerguimento. Até porque o clube não foi desmilinguido do dia para a noite. Isso aconteceu em um processo longo e contínuo.
O mesmo vale para o Botafogo, que vem há anos lutando dia a dia pela sobrevivência. Quem assistiu ao documentário Acesso Total – Botafogo, no Globoplay, viu sem filtros a dificuldade de manter o clube em pé. A volta à Série A veio, foi linda, mas exigiu uma batalha por dia. Conquistava-se hoje o direito de acordar amanhã.
Ronaldo e o investidor americano John Textor sabem o tamanho do abacaxi que terão de descascar. Eles e seus parceiros que embarcaram junto nesses projetos passarão os primeiros anos injetando dinheiro e tentando conter a sangria, com métodos de gestão ultraprofissional e corte de gastos. Muitas vezes, isso virá com medidas impopulares. Como foi no caso do goleiro Fábio, com história de quase mil jogos no Cruzeiro e liberado para procurar um novo destino aos 41 anos.
A torcida cruzeirense protestou e saiu em apoio ao ídolo. Só que, neste novo mundo das SAFs, o orçamento e o ídolo precisam estar alinhados. Se não estiverem, fica o orçamento, sai o ídolo. Até porque a conta arde em um bolso com CPF, e não mais em um buraco sem fundo – e sem dono.
Ecossistema
O caso de Fábio é só o primeiro estresse deste novo modelo. Outros parecidos virão. É bom o torcedor se acostumar. Ronaldo, Textor e os próximos donos de SAFs têm noção do barulho que terão de ouvir muitas vezes. Estão conscientes do tumulto que os espera. Eles também sabem que precisarão injetar muito dinheiro para salvar clubes quase falidos em busca do lucro que almejam.
São homens de negócio, calejados. Da mesma forma, sabem que qualquer sucesso empresarial exige um ambiente favorável, um ecossistema que jogue a favor. É nesse ponto que está o trampolim do futebol brasileiro, o salto para a criação de uma liga, com a adoção de um calendário razoável, com menos jogos e mais qualidade.
Nenhum dono de SAF ou acionista majoritário gostará de ver o jogador no qual gastou uma fortuna extenuado e com 60 jogos nas costas na temporada. Ou mais tempo no departamento médico, se recuperando, do que em campo. Muito menos pretende ver seu time jogando a cada três dias, esgotado, sem causar o apelo que faz o torcedor comprar por impulso os produtos do clube. Anote aí: futebol deixou de ser jogo. Virou produto. E, como tal, precisa ser vendido e precisa dar lucro.
Será um desafio e tanto, para todos nós, a adaptação a esse novo ambiente do futebol. Um modelo que mexerá com hábitos de torcedores, jogadores, técnicos e, principalmente, imprensa, que precisa estar capacitada para entender e contar essa revolução. Ela será longa. E começou neste verão escaldante de 2022.