Aos 49 anos, Lisca pode ser considerado um técnico cascudo do futebol brasileiro. O currículo aponta uma trajetória que começou na Série D, com o acesso do Juventude, passou pela Série C, ganhou casca na Série B e chegou à elite com passagens marcantes por Ceará e América-MG.
Mas foi para falar da experiência na Série B que a coluna conversou com Lisca na nesta sexta-feira. Em 2020, ele comandou o América-MG -no acesso. Antes disso, havia trabalhado na Segunda Divisão com Sampaio Corrêa, Náutico, Ceará, em que fez campanha inverossímil, salvando da queda, Paraná e Guarani. Toda essa bagagem o credencia a fazer uma aposta, de que o Grêmio subirá, mas também um alerta: há armadilhas demais. Confira.
Como você imagina o Grêmio na Série B?
Volta tranquilo, pela questão que se precisa muito na Série B, que é estrutura. Faz diferença e muito na Série B. Na Série A, não faz tanta diferença, todos os times têm estrutura. Assim como a questão financeira, que na Série A não faz mais diferença, já que todos os clubes cumprem compromissos e, se não cumpri-los, sabem que cairão. Dificilmente pega um clube sem gestão organizada na elite. Na Série B, é o contrário. A saúde financeira, em todo o transcurso da competição, faz muita diferença. O Grêmio terá essa vantagem.
O América, que você comandou, teve essa distinção em 2020, não?
Sim, foi a grande vantagem do América quando jogou a Série B. É um clube cumpridor, mesmo com investimento menor, não atrasa nada. Cumpre tudo direitinho. O que faz muita diferença na Série B. Neste ano, teve dois times que subiram com muita dificuldade financeira, o Botafogo e o Avaí. Mesmo assim, conseguiram o acesso.
O segredo é fazer um time de Série A para jogar a Série B?
Pergunta difícil. Mas deixa, antes, eu apontar outro item que faz muita diferença: a logística. O Grêmio terá vantagem. Os outros clubes, a grande maioria deles, não têm condições de ir dois dias antes para o jogo fora. Viajam na véspera, em deslocamentos de grande distância. Outra, o Grêmio poderá se hospedar em hotéis um pouco melhores. Os hotéis da Série B oferecem um pouco menos de estrutura, a alimentação já não é como a daqueles de Série A. Os clubes grandes não passam por isso. No América, a gente viajava aos destinos mais distantes dois dias antes. Também cuidávamos essa questão dos hotéis. Em três ou quatro jogos, fretamos voos.
Ainda nessa questão de viagens, há lugares com poucas opções de voos, como São Luís, Londrina, Chapecó.
Para chegar a São Luís, por exemplo, só há voo na madrugada. Você perde a noite de sono, chega 5h30min da manhã, passa noite viajando. O Grêmio, tenho certeza, nesses jogos, fará investimento maior. Isso faz diferença, a logística é o segredo.
Os estádios, com tantas camisas tradicionais na Série B, já deixaram de ser um fantasma?
Tem alguns estádios que ainda são mais difíceis. Nos Aflitos, mesmo com a reforma, a luz não ficou legal, o piso melhorou, mas ainda não está legal, assim como o vestiário. O próprio Náutico pretende fazer investimentos para melhorá-lo. O Brusque também é acanhado, mas não jogará lá (deve mandar em Florianópolis ou Joinville os jogos). O vestiário do OPA, do Vila Nova, é menor, e o gramado lá é castigado. Há uns cinco ou seis estádios que causam dificuldades. Por outro, tem Cruzeiro, Vasco, CSA e CRB, Operário, que é um clube-empresa e tem um campo que é tapete.
E o perfil para o time: de Série A ou com jogadores talhados e acostumados com a Série B?
Olha só. O América e a Chapecoense subiram juntos, com 73 pontos. O América com um futebol ofensivo para caramba, no 4-3-3, com bloco alto, pressão no campo do adversário, marcação por zona e conceitos modernos. A Chape usou uma ideia mais reativa, como bloco mais baixo, atacando mais na transição rápida, valorizando a bola parada e ganhando muitos jogos por 1 a 0. Os dois tiveram sucesso, subiram com modelos diferentes e com seis rodadas de antecipação. Isso chamou a atenção. O América já tinha esse modelo ofensivo, eu mantive e fomentei América já tinha esse modelo de jogo ofensivo, mantive, fomentei, só deixando-o mais direto. Tanto que, com esse modelo, o América foi à semifinal da Copa do Brasil. Não era um futebol de Série B. Claro, em alguns jogos do acesso, foi preciso ser mais pragmático.
Os times fazem um jogo mais direto, objetivo, baseado na bola aérea e na bola parada.
LISCA
O jogo da Série B é mais distinto no quê?
É mais picado, mais travado. O número de faltas é alto, a arbitragem trava o jogo. A condição de campo também interfere, em algumas partidas a parte técnica não consegue se impor. A marcação prevalece mesmo. Os times fazem um jogo mais direto, objetivo, baseado na bola aérea e na bola parada. Para você ter ideia, o ataque do América foi o sétimo, e o da Chape, o quinto. O que prevalece, na Série B, são as defesas. Fomos a menos vazada, com 22.
E quanto aos jogadores? Tem jogador de Série A e de Série B?
O modelo do América, para você ter ideia, foi baseado no Liverpool. O Felipe Conceição, que passou lá antes de mim, trouxe isso. O Rhodolfo era falso nove, fazia a função do Firmino. Ademir e Felipe Azevedo vinham de trás, para ocupar esse espaço na frente. Eu ainda tinha o Alê, meia de origem, e o Juninho chegando. Era um time da Séria A na Série B. Tanto que eles, mais o Eduardo Bauermann e o Matheus Cavichioli, seguiram titulares em 2021, na elite. Seis jogadores subiram o time e ficaram na campanha que leva à Pré-Libertadores.
Em resumo, é preciso ter qualidade de Série A, mas espírito para encarar a Série B?
Em alguns jogos, tem de ter poder de adaptação para um estilo mais competitivo. No futebol, a briga é de estratégia e parte tática. Os times da Série B usam a ligação mais direta, são mais faltosos, fazem um jogo mais disputado e competitivo. Não há tanto espaço para pensar como na Série A. É um jogo de menos qualidade técnica, mas que permite ao técnico arriscar mais, ser mais agressivo na marcação. Você pode abrir um espaço na Série B que os adversários não aproveitam. Se faz isso na Série A, os caras te matam. Por exemplo, deixar espaço entre as linhas, ao adotar um bloco mais alto, para pressionar mais. Na Série B, não é tanto problema isso.
Você teve um time de emergentes no América. Porém, no Vasco, o perfil era de nomes rodados de Série A.
Sim, o time era formado no Vasco por jogadores que haviam passado na Série A e estavam em baixa nesse mercado. Não funciona. Tem de cuidar. O jogador com currículo de Série A vê com demérito jogar a Série B. Ele já tem boa condição financeira, a carreira está mais estável, e ele não quer pagar o preço de jogar uma Segunda Divisão. Não vê crescimento nisso. O emergente, que era o perfil no América, vê como chance de crescimento jogar a Série B. Tive dois bons exemplos diferentes: um em um com jogadores com sede de crescimento e outro com jogadores, quase todos, em situação de vida bem resolvida. Nesse perfil, fica mais difícil.
O importante é buscar jogadores que tenham engajamento com a tua causa?
Tem de estar engajado no projeto, na ideia. Uma mescla com jovens é interessante. No América, usamos isso. No time, não havia tantos jovens, mas no grupo sim. Eram 16 oriundos da base entre 30 atletas. O que não pode é ter só meninos. A Série B exige experiência. É muito difícil essa competição.
O vice de futebol do Grêmio, Dênis Abrahão, disse em entrevista que o Grêmio terá força e velocidade. É esse o caminho?
Força e velocidade é preciso ter na Série A também. O que acontece na Série B é que se tem mais dificuldade de imposição técnica em alguns jogos. É uma briga de qual estratégia e modo de jogo se estabelecerá. Se ficar só na força, vai se igualar aos demais. Tem de competir, ter força, qualidade e solidez muito forte na parte coletiva.
É outro jogo contra o grande, o Grêmio tem de cuidar muito isso
LISCA
SOBRE A SÉRIE B
Você percebia que os rivais haviam transformado o Vasco no time a ser batido?
É outro jogo contra o grande, o Grêmio tem de cuidar muito isso. Você verá um jogo entre CRB x Sampaio Corrêa, por exemplo. Os dois atuam de uma forma. Contra o Grêmio, será outra postura. Os jogadores encaram com a grande partida da competição, como a vitrine. Vasco e Cruzeiro, em 2021, e o Vasco mais, por ser primeiro ano, sofreram muito isso. O Botafogo, por sua vez, foi pelos cantinhos, comendo pelas beiradas, usou um jogo reativo. Imagina time grande fazendo jogo reativo na Série B? O Botafogo fez e subiu bem. Teve uma recuperação boa a partir da chegada do Enderson Moreira. Ele arrumou a defesa, usou bloco baixo e transição. Deu certo. O Vasco não conseguiu jogar assim. O Grêmio dificilmente conseguirá.