Escrevi, na última sexta-feira (10), aqui na coluna, sobre o simbolismo do mural afro cercado de água no centro de Porto Alegre. Com 65 metros de altura, a obra mostra uma mulher negra segurando um ramo de Justicia gendarussa — erva ligada a Ogum e Iansã (orixás guerreiros), conhecida nas religiões de matriz africana como planta de grande poder, capaz de vencer tudo, quem sabe, até uma catástrofe climática.
Descobri, dias depois, que nem mesmo a mãe de santo retratada no desenho resistiu à força das águas.
Líder comunitária, voz ativa do Instituto Camélia (que leva alimentos orgânicos à população das periferias), Beatriz Gonçalves Pereira, a Bia da Ilha, já viu muitas enchentes. Ela vive na Ilha da Pintada, banhada pelo Guaíba, desde que nasceu, há 62 anos, onde desenvolve trabalho social e ajuda muita gente.
Em todos esses anos, Bia jamais havia testemunhado uma enxurrada nas proporções da atual. Como milhares de gaúchos, ela perdeu tudo. É uma refugiada do clima.
Conversamos nesta segunda-feira (13) fria e cinzenta em Porto Alegre. Perguntei a ela, que foi acolhida na casa de conhecidos, o que os orixás dizem a respeito da tragédia coletiva que vivemos — já escrevi aqui que não sou uma pessoa religiosa, mas respeito quem tem fé e espero que a fé nos ajude.
— Sinto a força dos orixás. Vamos passar por isso, mas não vai parar por aí. As águas só querem passar. Os rios estão sangrando, estão doentes. Achamos que somos mais poderosos do que a mãe natureza, mas não somos. As águas falam, a terra fala. A mãe natureza está cobrando a conta — diz Bia, filha de Iemanjá e de benzedeira.
No último alagamento, em novembro passado, a água parda do Guaíba chegou até a metade das paredes. Dessa vez, cobriu tudo. Levou tudo. Só não arrastou a esperança.
— Não devemos reclamar do rio. Temos de ouvir o que ele diz. O progresso é bom, mas bom para quem? Precisamos mudar. É a única saída — conclui Bia.
Mudar significa rever conceitos e a forma como nos relacionamos com o meio ambiente. Significa reflorestar e preservar o que ainda há de verde, reduzir o concreto (já ouviu falar em despavimentação?), tornar nossas cidades mais resilientes, reduzir as emissões de CO2 e cuidar melhor das margens dos mananciais, entre tantos outros desafios. Significa cuidar do planeta, porque não há "planeta B".
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P.S.: se puder, ajude o Instituto Camélia (pix: 39.229.131/0001-80, CNPJ) que ficou coberto de água na Avenida Presidente Vargas, na Ilha da Pintada. A entidade é uma associação da sociedade civil sem fins lucrativos, que aposta na educação popular, na agroecologia e no trabalho em rede para reduzir as desigualdades sociais. Mais de 600 pessoas em situação de vulnerabilidade social (80% delas mulheres) são impactadas.
Se quiser auxiliar também a Bia da Ilha, o WhatsApp é (51) 98552-6700.