Terminou em diálogo a controvérsia que opôs os dois principais templos católicos da Capital ao roteiro "Porto Alegre Mal-Assombrada", walking tour digno dos mais famosos passeios guiados do mundo. No início tarde desta sexta-feira (15), o padre Lucas Matheus Mendes, jovem pároco à frente da Basílica Nossa Senhora das Dores, recebeu os criadores do projeto para uma conversa.
Dias antes, como mostrei aqui na coluna, André Hernandez, idealizador do tour, havia recebido uma notificação extrajudicial das paróquias Madre de Deus, igreja matriz da cidade, e Nossa Senhora das Dores para que apagasse postagens das duas fachadas nos perfis do projeto nas redes sociais.
Assinado pela advogada Camila Torquato, o texto dizia que as "imagens não condizem com os valores e princípios" das paróquias e que o tour mal-assombrado estava "longe de ser verdade".
A notificação dizia, também, que a associação ao "conteúdo de terror" poderia "levar ao prejuízo de sua imagem perante aos seus membros e mesmo trazer uma impressão errada dos valores ali passados e pregados", com "abalo a sua própria imagem, admiração, respeito e credibilidade".
Hernandez ficou surpreso ao receber a notificação e decidiu procurar o padre para explicar o que classificou como mal-entendido - e, claro, para convidá-lo a fazer o roteiro. A ação, criada em 2019, é um sucesso de público, atraindo visitantes de fora da Capital e também moradores locais, encantados com a possibilidade de caminhar pela cidade à noite e ouvir sobre suas lendas.
— Eu contei ao padre como é o tour. Sempre destaco a beleza da arquitetura dos templos, que são um orgulho para Porto Alegre. Muita gente inclusive volta no dia seguinte só para visitar as igrejas — afirma Hernandez.
No percurso, o empresário conta a história de Josino, homem negro escravizado que foi enforcado em frente à Nossa Senhora das Dores por seu "proprietário", chamado Domingos, no fim do século 19. Josino teria dito que, para provar sua inocência, Domingos jamais veria a igreja (então em obras) ficar pronta.
— No tour, relato que foi exatamente isso o que aconteceu: seu Domingos morreu antes da conclusão das obras, o que seria a prova, não de que a basílica é amaldiçoada, como muita gente diz, mas de que é uma igreja da justiça divina. É como se Josino tivesse sido inocentado. Em nenhum momento eu falo mal da basílica, pelo contrário — destaca Hernandez.
O padre Lucas (que também já saiu aqui na coluna pelo belo trabalho que vem desempenhando na basílica) ouviu tudo isso com atenção.
— Foi uma boa conversa. Não queremos proibir nada e muito menos apagar a história. Negar a escravidão seria um erro. Só não gostamos de ver em alguns posts a associação da igreja, que é um lugar de bênção, luz e vida espiritual, com termos como assombração e maldição. Isso incomodou alguns paroquianos — diz o padre.
No fim, ficou decidido que Hernandez irá preparar um texto no qual explica o sentido do tour e a forma de abordagem das igrejas, para que as paróquias avaliem a possibilidade, então, de autorizar o uso das imagens.
Além disso, Hernandez reforçou o convite ao padre para que faça uma das caminhadas, e o pároco convidou a equipe do roteiro para participar da Procissão do Encontro, na Sexta-Feira Santa, e de outras atividades da igreja - entre elas, a elaboração de um roteiro para um documentário sobre o caso de Josino, que está sendo pesquisado pela museóloga Caroline Zuchetti, da Cúria Metropolitana.
— É claro que aceitamos e queremos muito contribuir — disse Hernandez.
— E eu vou fazer o tour, sim — garantiu o padre.
Que baita exemplo!