Durante umas boas três décadas publiquei nos dezembros uma ou duas páginas com listas dos 10 melhores discos do ano nas avaliações de críticos de várias capitais. Em 2020 decidimos não fazer as listas devido à pulverização dos lançamentos entre físicos e digitais e à instabilidade que tomou conta do panorama musical (e cultural) devido também à pandemia. Em 2021 isso não apenas se intensificou como "assistimos" à proliferação intensa e desordenada de produtos digitais. Neste ano que chega ao fim, mesmo que a instabilidade permaneça, pelo menos já se pôde perceber um cenário menos caótico.
Por tal razão, resolvi retomar os destaques, ainda que sejam só os meus, isto é, a partir de um universo resumido e mais voltado para a produção gaúcha. Quem sabe em 2023 meus amigos jornalistas musicais decidam reencarar o antigo hábito, mesmo em tempos atomizados, pois isso não mudará mais. Em 2022 registrei na coluna 65 discos físicos e álbuns digitais. Outros tantos recebidos foram ficando para trás por falta de espaço ou porque não gostei – não costumo fazer criticas negativas. Então: 10 grandes discos/álbuns ouvidos este ano, sem ordem de preferência:
Senhora das Folhas, de Áurea Martins
Partindo do eixo de matrizes femininas afro-indígena-urbano-rural, a cantora carioca de 82 anos faz um trabalho de grande potência, antológico, obra-prima. (Biscoito Fino)
Vestido de Amor, de Chico César
Gravado na França, o 10º disco do paraibano tem como tema o pan-africanismo sob o ponto de vista da diáspora negra. Com reggae, rumba, rock, ritmos do Nordeste e mais. (Chita Discos)
60 Mini Songs, de Carlos Careqa
Mesmo catarinense, Careqa é o último real representante da Vanguarda Paulistana, como este surpreendente disco mais do que comprova. Tem de tudo! (Barbearia Espiritual)
Vinda Boa, de Picumã + Arismar
Técnica e tesão de tocar unem o quinteto instrumental gaúcho e o multi-instrumentista paulista Arismar do Espírito Santo. Do regional ao universal, sem fronteiras. (Lei Aldir Blanc)
Avenida Angélica, de Vitor Ramil
Pela primeira vez, Vitor faz grande música só com versos de outro, a poeta Angélica Freitas. E este ano lançou também a edição comemorativa dos 25 anos do clássico Ramilonga. (Satolep)
Kaynakani, de Marcelo Corsetti
Um dos grandes da música instrumental do RS (e brasileira!), o guitarrista se supera no novo trabalho. Um supertime de músicos está com ele nesta epifania sonora. (Produto Oficial)
Ilexlândia, de Pirisca Grecco
Há uns bons anos Pirisca vem renovando a maneira de ser gauchesco. Não grita, não é "bagual", se impõe com trabalhos consistentes como este, ao lado da Comparsa Elétrica. (Independente)
Contraluz, de Bebeto Alves
Uma espécie de síntese da obra, mas elevada a um patamar raro de se ver em um compositor de tão larga trajetória. Disco de despedida: Bebeto nos deixou em 7 de novembro. (Produto Oficial)
Flachianas, de Cristian Sperandir
Pianista de nascimento, grande revelação da música instrumental gaúcha, Cristian e convidados homenageiam o mestre Geraldo Flach no 10º ano de sua morte. Impecável! (Independente)
Samba às Avessas, de Pâmela Amaro
Depois deste ótimo álbum de samba porto-alegrense, a cantora e compositora estrelou o ótimo documentário com o mesmo título (de Gautier Lee) que foca a cultura afro-gaúcha. (YB Music)
(L)Este, de Alejandro Brittes
O nono disco do acordeonista argentino (radicado no RS) faz a arqueologia do chamamé na música barroca europeia do século 18 com a ajuda do expert Fernando Cordella. (Independente)
Depois de escrever, me dou conta de que alinhei 11 discos, e não 10. No problem, fica assim, poderiam ser 12 ou 13 ou mais. Por exemplo: os shows deste ano em Porto Alegre. Acho que nunca foram tantos, frutos da demanda reprimida pela pandemia. Só o Auditório Araújo Vianna, com shows sempre lotados de grandes nomes e novos nomes de todos os gêneros e estilos, deve ter batido recordes de público.
Dois livros definitivos
Porto Alegre – Uma Biografia Musical, Vol. 1, de Arthur de Faria
Mereceu uma, digamos, resenha antológica de Vitor Ramil. Me encolhi ao lê-la, de tão boa. Arthur é o grande historiador da música da Capital – já publicou a biografia de Elis e antes do segundo volume deste agora, sairá a biografia de Lupicínio. Ele pesquisa bem, escreve com desenvoltura e senso de humor, é apaixonado pelo assunto e transfere isso para o leitor. (Arquipélago Editorial)
Kleiton & Kledir, a Biografia, de Emílio Pacheco
O mergulho na trajetória dos manos de Pelotas radicados no Rio desde 1978 é tão profundo, que arrisco dizer no prefácio que algumas coisas eles ficaram sabendo só ao ler o livro. Jornalista por vocação, com memória milimétrica, Emílio sabe tudo o que se passou na música de Porto Alegre (e do mundo) dos 1970 para cá. Ninguém mais se atreverá a escrever sobre K&K. (Editora Bestiário)