Sabe quando o artista tem um insight que projeta seu trabalho para além dos padrões habituais ou esperáveis? Em seu nono álbum, o duplo (L)ESTE, o acordeonista e compositor argentino Alejandro Brittes consegue isso. Quase tudo ali é surpreendente. Fosse só pela música já valeria uma exaltação, mas no encarte está a chave para a viagem no tempo que a criação propõe. (L)ESTE resulta de uma pesquisa sobre o chamamé feita por Brittes com a historiadora e produtora cultural Magali de Rossi, lançada em livro em 2021.
No disco 1, YVY, o que se tem é o possível retrato do impacto da chegada da música barroca europeia aos ouvidos dos índios guaranis nas missões jesuíticas do século 18 – estaria aí a gênese do chamamé, que já se espalha pelo cone sul da América. Para se aproximar da sonoridade da época, Brittes chamou uma das autoridades brasileiras em música barroca, o maestro e cravista porto-alegrense Fernando Cordella, que fez os arranjos e reuniu os músicos para executá-los.
Antes de seguir, cabe lembrar que Alejandro Brittes nasceu em Corrientes e seu pai foi produtor de grandes nomes do chamamé. Começou a tocar acordeom aos 12 anos, aos 15 gravou o primeiro disco e cinco anos depois, 1996, foi premiado no Festival de Cosquín como o melhor acordeonista. Em 2001 saiu da Argentina pela primeira vez, para se apresentar no RS. A partir daí foram tantas vindas, e tantos novos amigos, que em 2011 ele decidiu radicar-se em Porto Alegre, partindo para apresentações pelo Brasil e Exterior.
Bueno, o disco 1 tem seis composições de Brittes e parceiros (André Ely, Odair Teixeira), entremeadas por dois movimentos da Sonata para Violino em Lá Maior, de Domenico Zipoli – nascido na Itália em 1688, ele destacou-se como cravista e compositor até optar pela vida religiosa, vindo para as Missões na América; morreria na Argentina em 1726. A Sonata é música barroca propriamente dita, e Cordella buscou essa atmosfera orquestral para os chamamés atuais. Caiboaté, faixa de abertura, retrata o massacre dos guaranis pelos espanhóis e portugueses em São Gabriel, RS, em 1756.
Brilhante trabalho de Cordella e seu cravo à frente de André Ely (violão 7 cordas), Javier Balbinder (oboé), Giovani dos Santos, Marcio Cecconelo (violinos), Carlos de Cesaro (contrabaixo), Diego Biasibetti (violoncelo barroco, viola de gamba), Ricardo Arenhaldt (percussão), Alexandre Ritter (violone), Guilherme de Camargo (guitarra barroca). Esse pessoal está no disco YVY, gravado em formato ao vivo em uma igreja. Neste disco 1 não há chamamé “para dançar”.
Já no disco 2, MARÃIY, gravado em estúdio com arranjos basicamente para trio, o acordeom ao lado dos ótimos violão 7 de André Ely e contrabaixo de Carlos de Cesaro, os chamamés dançantes são vários, alguns deles bem acelerados. Músicas como La Colorada, Un Mate a la Distancia e Laberintos afirmam a potência criativa de Brittes. Fecha o álbum Raíces del Alma, parceria com Lucio Yanel e o convidado Raúl Barbosa, outro mestre do chamamé. Por todas essas, (L)ESTE é um álbum que já nasce clássico. Brittes foi um dos ganhadores do Prêmio Açorianos 2022.
Inquietações existenciais
O título do quinto álbum de Gustavo Telles & Os Escolhidos, Hoje, aos 43, antecipa bem o clima. O músico que se projetou como baterista e compositor da banda instrumental Pata de Elefante sentia falta da voz para se expressar. Daí partir para o trabalho próprio. A entrada nos 40, em plena pandemia, ensejou ainda mais inquietações existenciais, que perpassam as faixas. A produção e os arranjos do bamba Luciano Albo (baixo, guitarra, violão, percussão) garantem alta eficiência sonora, ainda mais com participações como King Jim (sax), Murilo Moura (teclados), Marcio Grings (harmônica). Quem curte pop/rock/folk/blues vai gostar. A única faixa efetivamente porrada é Presidente Fascistão.
Independente, disponível no streaming; disco físico em 2023
Romantismo depois dos 50
Não interessa o nome real, interessa é que, aos 50 anos, resolveu se lançar na música como Anka Brasil. E acaba de lançar o segundo disco, Amor sem Fronteiras, coleção de 11 canções em que a tônica é o romantismo, com produção de Veco Marques. Aqui ele pode lembrar Zé Ramalho, ali Odair José, ou Raul Seixas. Sabe cantar, é convincente. E sabe compor, boas melodias e boas letras, como “Se a cama incendeia/ E o colchão pega fogo/ O prazer vai custar caro/ Mas você vai querer de novo”. Nascido na Capital, tem vivência no campo, formação mesclando rock e nativismo. Daí uma milonga abolerada em espanhol, como Mi Pecho de Acero, e um vanerão com guitarras como Bate Asa o Coração.
Ímã Records, CD R$ 9,90 em produtooficial.com.br. Disponível no streaming