Por Vitor Ramil
Escritor e compositor
Prezado Octávio de Faria. Meu nome á Ana Ramil. Sou editora de Porto Alegre – Século XXII. Acompanho teu trabalho de compositor e pesquisador com muito interesse. Aliás, como já verás, meu interesse pelos De Faria se estende ao passado distante. No momento estou focada no ano de 2022, quando teu tataravô Arthur de Faria lançou o volume 1 da série Porto Alegre, uma Biografia Musical, cuja reedição temos quase finalizada. Há exatamente um século, a cidade completava 250 anos. Se a efeméride era então significativa para marcar o lançamento de um livro que investigava sua música desde os primórdios, agora, em meio às comemorações dos 350 anos, não é diferente.
Estamos preparando uma linda reedição da obra completa de Arthur de Faria para as plataformas iMind e iSoul, conduzida pelo avatar do autor. Na sequência lançaremos os volumes 2, 3 e 4 da série, além de seu desdobramento nas biografias de Elis Regina, Radamés Gnattali e Lupicínio Rodrigues e das histórias do Rock Gaúcho e da Música Regional Gaúcha do RS. Consideramos também a possibilidade de lançar sua obra inconclusa RIAS – Rio da Inteligência Artificial Grande do Sul, sobre a então nascente música criada por inteligência artificial no Estado, como o irônico título sugere.
Porto Alegre, uma Biografia Musical, escrita com leveza e humor, ajudou Porto Alegre a se enxergar e ser menos cruel consigo mesma. Contribuiu também para desfazer a imagem do Rio Grande do Sul como lugar de gente branca e sem suingue. Quantos negros foram responsáveis pelo melhor de sua música, das origens até os anos 1960, final do primeiro volume! O autor destaca em seu texto o protagonismo da música popular das Américas em relação à do resto do mundo, construída a partir do aporte da cultura africana, importada à força pelos brancos de tradição europeia, claro. A certa altura, pergunta-se algo para o que ainda não temos resposta: se o candombe, registrado com este nome em Porto Alegre, seria o mesmo candombe de Montevidéu. Hoje é ponto pacífico que a milonga, essa filha da “dolente e sedutora” habanera, é ritmo platino de origem negra (em que pese, segundo Arthur, a metamorfose da habanera: da country dance inglesa para a contredanse francesa e posterior africanização em… La Habana, Cuba), mas naquela época seria inimaginável que um gaúcho movesse as cadeiras languidamente enquanto refletisse sobre a imensidão do pampa e a pequenez do mundo.
Arthur mostrou a mosquinha mestiça da habanera em nosso meio, que gerou, entre outras coisas, a mutuca do vanerão; delineou a Colônia Africana entre o Rio Branco e o Bom Fim, sua dura realidade e sua pujança e resistência cultural; desceu luz sobre o Candombe da Mãe Rita e a Ilhota, de Lupicínio Rodrigues, ícone maior de negros geniais como Joaquim José de Medanha (compositor do Hino Farroupilha – depois, do RS), Geraldo Magalhães (natural de São Gabriel, líder de Os Geraldos, ídolo aqui, no Rio, em Paris, Portugal e sabe-se lá onde mais) e sua partner Nina Teixeira, o prolífico e onipresente Octávio Dutra (“o cara na música de Porto Alegre das primeiras décadas do século 20”), Caco Velho (nacional e internacional, gravado por Amália Rodrigues e muitos outros intérpretes); a primeira jazz band, Espia Só, liderada por Albino Rosa, formada exclusivamente por negros, como aliás o eram quase todos os outros grupos; a Sociedade Carnavalesca Congos, ainda lá no final do século 19, que fazia espetáculos durante o ano para arrecadar dinheiro que seria destinado à compra de cartas de alforria; e depois os talentos de Marino dos Santos, Paulino Mathias, Horacina Corrêa, Lourdes Rodrigues, Zilah Machado, Maria Helena Andrade, Azeitona, Johnson, Rubens Santos… São tantos!
Completavam a cena riquíssima e diversa daqueles anos os “italianos” igualmente brilhantes Dante Santoro, Radamés Gnattali, Salvador Campanella, Antônio Francisco Amábile (o Piratíni), Tulio Piva; os “alemães” e sua forte tradição musical: Chiquinho do Acordeom (um virtuose recordista de participações em discos brasileiros), Roberto Eggers, a Royal Jazz Band, Alfred Hülsberg, Karl Faust (que retornaria à sua Alemanha natal para tornar-se produtor de mais de 300 discos na prestigiada Deutsche Grammophon); e os “brasileiros” Alcides Gonçalves, Paulo Coelho, Arthur Elsner, Alberto do Canto, Ovídio Chaves (do mítico Clube da Chave), Edu da Gaita, Peri Cunha, Jessé Silva (que também era bom de mira: afundou dois submarinos alemães!), Alberto, Nilo e Paulo Ruschel, o Conjunto Farroupilha, Maestro Macedinho, Luis Telles (do Quitandinha Serenaders, que trouxe João Gilberto para viver um tempo em Porto Alegre), Demósthenes Gonzalez, Plauto Cruz, Luiz e Sotero Cosme, Norberto Baldauf, Armando Albuquerque, Elis Regina… São tantos também!
As rádios tinham suas próprias orquestras (o suíço Walter Smetak passou por uma delas). Segundo Campanella, a Ospa surgiu da Grande Orquestra da Rádio Farroupilha. Até a Carris, sim, a dos ônibus, tinha a sua banda de jazz, a Jazz Carris. O empreendedor italiano Saverio Leonetti e sua pioneira Casa Elétrica, o arquiteto alemão Theo Wiederspahn e seus prédios que ainda frequentamos e os Bertaso e sua Livraria do Globo (Augusto Meyer, Mansueto Bernardi, Erico Verissimo, Mario Quintana…) faziam a sua parte no entorno, marcando a cultura local para sempre.
Durma-se com um barulho desses! E pelo jeito o pessoal dormia pouco mesmo. A noite fervia. Parafraseando Ernest Hemingway: Porto Alegre era uma festa. Mas o melhor da festa, segundo o autor, teve fim com o advento da televisão e do videoteipe (os famosos enlatados: fitas com números musicais vindas dentro de latas direto da matriz em Rio ou São Paulo), que terminaram com os empregos de músicos e cantores e com a difusão dos compositores locais. Ou seja, como ainda hoje, o mercado e os suportes tecnológicos davam as cartas. Arthur de Faria esboçou o tema em RIAS, mas teve a sorte de já não estar entre nós para testemunhar o tamanho do estrago feito pela inteligência artificial nos empregos e, pior, na inteligência natural de nossa música.
Peço desculpas, Octávio, por me estender nas citações, é que estou com esses nomes e suas histórias impagáveis na cabeça. Acabo de organizar o índice onomástico para a nossa edição, coisa que faltou na primeira, cem anos atrás. Falando em tecnologia, nossos leitores poderão interagir com alguns nomes do nosso índice como Lupicínio, Elis ou Caco Velho (seus temperamentos e vozes foram recuperados pelo Reborn 7), bem como com o autor da obra. Uma maravilha, não? Conversar com Arthur de Faria certamente será prazeroso, pois ele era divertido escrevendo e pessoalmente. Sei disso porque nosso folclore familiar preservou algumas histórias dele com meu tataravô, Vitor Ramil. Ao dizer isso, chego ao motivo desta carta. Não precisava ter sido tão longa, eu sei, mas o tema me entusiasma.
Consta que meu tataravô escreveu sobre o livro do teu, por ocasião de seu lançamento. O texto teria sido publicado no jornal Zero Hora, ainda em papel, mas nunca consegui localizá-lo (parte do acervo digital de ZH se perdeu acidentalmente há 28 anos). Se de fato existiu, eu gostaria de aproveitá-lo em nossa edição como parte da fortuna crítica que estamos organizando. Nosso amigo comum Daniel Levitan me disse que talvez tivesses esse texto. Confere?
Teu tataravô Arthur dizia que a pessoa física do meu era mais legal do que a jurídica. Meu tataravô Vitor dizia que o teu sofria de hiperatividade composicional, grave enfermidade que se manifestava a cada compasso. Chamava-o de Ar Puro, mas guardava o sobrenome Patifaria para um eventual desentendimento entre eles. Parece que o Ar Puro nunca deu motivos para isso, pois foram sempre bons amigos. Aliás, pensei agora que poderíamos reunir os avatares de ambos para um diálogo no volume 3 da série biográfica de Porto Alegre. Quem sabe até tocando juntos? Mas isso fica para um futuro próximo.
Abraço,
Ana Ramil
P.S.: Só agora me dei conta de que teu nome de batismo é o mesmo de Octávio Dutra, ídolo do teu tataravô! Pois o meu é homenagem à minha tataravó, Ana Ruth, que meu tataravô tanto amava.