No Interior, há quem chame de facão o sujeito que dirige mal. Décadas atrás, quando havia músicas theatraes e de phonógrapho, facão também era gíria para identificar quem tocasse mal algum instrumento. Terror dos Facões, o afamado quarteto liderado pelo maestro, compositor e violonista Octávio Dutra, tinha no nome essa singela homenagem à barbeiragem musical.
Diz a mitologia local que mau músico não demorava a sucumbir ao tentar acompanhar Dutra e seus parceiros, os terrores dos facões da cena musical porto-alegrense dos anos 1910 e 20.
Dutra, na verdade, era "o" cara dessa cena. É sobre ele o documentário musical Espia Só, em exibição desde esta sexta-feira no CineBancários, no Instituto NT e na Cinemateca Paulo Amorim. Assinado pelo diretor Saturnino Rocha e pelo produtor Carlos Peralta, mesma dupla do média-metragem Tango, uma Paixão (2008), o longa estreia também em outras sete capitais brasileiras - é mais uma produção gaúcha da leva que ganhou o Edital de Finalização de Longas da Secretaria de Estado da Cultura e que está chegando, aos poucos, aos cinemas.
Espia Só é o nome de uma canção de Dutra e seu Terror dos Facões. Está entre as 16 que ganharam arranjos do diretor musical Arthur de Faria, para serem executadas à frente das câmeras - inseridas em meio a depoimentos de pesquisadores e familiares, em performances de Yamandu Costa e Pedro Franco, de um grupo de choro montado para o filme (que tem, entre outros, o flautista Plauto Cruz) e pelo próprio Arthur de Faria & Seu Conjunto.
- O Saturnino e o Peralta queriam que fosse um média, como Tango. Fui fazendo cada vez mais músicas, e o filme acabou aumentando - relata Arthur. - As canções do Octávio Dutra são ricas, complexas. Evidenciavam inquietações formais, com algumas notas surpreendentes que dificultavam a execução. Era uma de suas marcas registradas, que justificavam a ideia por trás da expressão "terror dos facões".
Há, entre as músicas, valsas, o que outrora se chamavam "tangos brasileiros" (Teimoso), marchinhas para cordões carnavalescos (Vae Botá Isso Lá), pelo menos um "choro milongueado" (Sahe da Frente), foxtrotes (Mimosa, em belo arranjo de cordas) e uma ousada adaptação da ópera O Guarany, de Carlos Gomes, para orquestra de cavaquinhos, bandolins e violões.
A qualidade musical é referendada pelo capricho da produção e por escolhas certeiras. Entre elas, o som captado diretamente das performances dos músicos e o registro, sem encenação, dos momentos de encanto pela descoberta do acervo de Dutra por parte de um grupo de pesquisadores, entre os quais está o violonista Daniel Wolff.
- Sei que estamos criando uma marca como realizadores de musicais - diz Saturnino Rocha, explicando que queria fazer um média-metragem porque pensava no mercado de DVDs, como fora com Tango. - Mas lançar esses dois filmes em sequência não foi algo planejado. A ideia do Espia Só apenas surgiu quando falei com o (músico e pesquisador) Hardy Vedana (1928 - 2009) para a realização de Tango. Agora, propostas para projetos semelhantes têm aparecido. O Arthur quer fazer um longa sobre o movimento roqueiro do IAPI, com bandas como Bixo da Seda e Liverpool. Quem sabe não será o próximo?
Um precursor
> Composta em 1900 e oportunamente intitulada Valsa Nº 1, esta canção de Dutra é apontada como marco inicial da produção musical gaúcha do século 20. À época com 15 anos, ele se tornaria em seguida o grande nome da música local - foi mestre de várias gerações, primeiro conhecido compositor de jingles do RS e primeiro diretor de programação da Rádio Gaúcha (entre 1927 e 1934).
> Em 1913, sua valsa Celina vendeu 40 mil discos - "Equivalente ao que seriam meio milhão de cópias hoje", diz Arthur de Faria no filme. No mesmo ano, escreve Arthur no livro Um Século de Música no RS, Dutra bateu o recorde nacional de músicas gravadas - das 200 registradas no país, 30 eram suas. "Com isso", diz o texto do jornal A Noite da época (a grafia original está mantida), "vão sendo suplantadas as músicas importadas, que para aqui eram trazidas nas peças theatraes. A música do theatro está sendo desbancada pela do phonógrapho".
> Octávio Dutra nasceu em Porto Alegre, em 1884. Originário de uma família de posses, conta Hardy Vedana em Octávio Dutra na História da Música de Porto Alegre, teve sólida formação erudita. Seu quarteto Terror dos Facões, um dos precursores do choro brasileiro, estava entre o que o gênero oferecia de melhor à época - e olha que era o tempo dos Oito Batutas, de Donga e Pixinguinha.
> Morto em 1937, aos 53 anos, pobre e esquecido - devido a dívidas familiares, apontam pesquisadores -, deixou uma obra prolífica que sobrevive em homenagens como o disco Espia Só - As Músicas de Octávio Dutra, lançado em 2003 pelo duo Retrato Brasileiro (Márcio de Souza e Nivaldo José) com financiamento do Fumproarte e distribuição do selo Revivendo.
> Além dos livros de Hardy Vedana e Arthur de Faria, há informações sobre Dutra nos fascículos de O Som do Sul, escritos por Henrique Mann e lançados em 2002. Em soundcloud.com/musicadeportoalegre, projeto ligado ao livro Uma História da Música de Porto Alegre, que Arthur está publicando em capítulos no site Sul 21 (sul21.com.br), é possível ouvir gravações originais do músico e de seu Terror dos Facões.