"A música sertaneja é a trilha-sonora do agronegócio." Foi esse o título da entrevista que fiz com Charles Gavin em junho de 2020, publicada no caderno DOC. Disse mais, o Charles: "Os artistas sertanejos são totalmente pró-governo, ou apolíticos, ou despolitizados". Não preciso dizer de que governo ele falava. Pois dias atrás, os principais jornais do Sudeste abriram páginas para o que está sendo chamado de "farra dos sertanejos", motivando a entrada em cena dos Ministérios Públicos de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Roraima.
O estopim foi a revelação de que a prefeitura da cidade de Conceição do Mato Dentro, 19 mil habitantes, pagaria R$ 1,2 milhão por um show do cantor Gusttavo Lima, e que, devido à repercussão negativa, cancelara o contrato. Em manchete, o jornal Estado de Minas listou outras nove cidades mineiras, todas com menos de 50 mil habitantes, que haviam gasto em 2022 mais de R$ 7 milhões com shows de artistas sertanejos - algumas delas com obras em escolas e hospitais paradas. Não entro aqui em detalhes como as multas por cancelamento de contratos, que são altas.
Para resumir: até a última segunda-feira 29 cidades dos Estados citados estavam com shows investigados pelo Ministério Público. Na Bahia, a Justiça cancelou a Festa da Banana na cidade de Teolândia, 13 mil habitantes, que custaria R$ 2 milhões (sendo R$ 700 mil para Gusttavo Lima) e que se realizaria até amanhã. Esse valor é mais de 40% de todo o gasto do município com saúde em 2021, informou a Folha de S.Paulo. É apenas mais um exemplo, e por aí vai. Inclusive cidades flageladas pelas enchentes contrataram, sem licitação, artistas do gênero.
Esse Gusttavo, mineiro repaginado por uma das milionárias "fábricas" de sertanejos com sede em Goiânia, teve o azar de, digamos, ser pego em flagrante pelo excesso de seus empresários. Aí foi para as redes sociais chorar lágrimas de crocodilo, como "injustiçado". Mas no meio (eventos como rodeios e feiras agropecuárias), é chamado de "embaixador do agronegócio". Teve o azar, também, de um colega seu, o tal Zé Neto, ter declarado que os sertanejos não mamam na Lei Rouanet (de incentivo à cultura), já vilipendiada no âmbito do governo federal.
Não mamam na Lei Rouanet mas na incúria de prefeitos associados a políticos do Centrão. Não tenho nada contra o agronegócio desde que ele não interfira na ecologia e na cultura brasileira, não imponha regras e gostos, como vem fazendo há vários anos e cada vez mais. Uns meses atrás, Kamilla Fialho, ex-empresária de Anitta, disse em entrevista, com todas as letras, que os sertanejos mandam na música com o dinheiro de sua associação com grandes fazendeiros. Se ainda fosse uma música que preste... Mas não, é tudo one way, tudo use e descarte.