Em uma manhã do início de abril de 1972 fui à loja King's Discos, na Galeria Chaves, comprar o LP Expresso 2222, primeiro que Gilberto Gil lançava depois da volta do exílio em Londres. Admirador do trabalho dele, eu me antecipava para conhecer as músicas do show que apresentaria dias depois no Teatro Leopoldina. Fui para casa ouvir e logo, na redação de Zero Hora, escrevi meu primeiro comentário de um disco – eu lia todas as resenhas de discos escritas por Ezequiel Neves no Jornal da Tarde e Tárik de Souza na revista Veja. Pensei em seguir aqueles passos. Não seria difícil, pois era editor de ZH Variedades (mais tarde Segundo Caderno) e havia bastante espaço. Sobre shows eu já começara a escrever.
Na mesma semana da publicação do texto sobre Gil, o divulgador da gravadora EMI-Odeon, José Carlos D'Avila, aparece na redação com um pacote de LPs. Vira a abertura de uma área para discos e vinha vender o seu peixe. Somos amigos até hoje. No pacote, fulgurava o Meddle, meu primeiro Pink Floyd. Dei a capa do caderno. Começava ali meu vício no Floyd. Daí foram chegando os divulgadores das outras gravadoras – Philips, RCA, CBS, CID, Continental... Nunca mais parei. E tudo começou com Gil, exatos 50 anos atrás. Quando assisti ao show, já conhecia todas as músicas e no dia seguinte o procurei para marcar meu primeiro entrevistão, feito em meu apartamento logo depois de um dos shows.
Essa entrevista abre o primeiro volume de meu livro Aquarela Brasileira (Diadorim Editora, 2021), referente aos anos 1970, que inclui 27 outras conversas longas. Passei a entrevistar a maioria dos artistas que vinham se apresentar em Porto Alegre e também artistas gaúchos. Consegui reunir e arquivar mais de 150 entrevistas, das quais umas 70 sairão nos próximos volumes. Pelo menos 90% delas publicadas em Zero Hora. Posso dizer que meus 50 anos de carreira no jornalismo musical começam com um disco de Gil e uma entrevista com ele. Entrevistei-o nove vezes.
Guilherme Arantes desabafa
Incomodado com a pouca repercussão de seu novo (e ótimo) álbum, A Desordem dos Templários (27º em 45 anos de carreira), gravado na cidade espanhola de Ávila, onde vive há alguns anos, Guilherme Arantes publicou em suas redes sociais uma espécie de desabafo sobre os tempos atuais. Aqui o texto, com pequenos cortes:
"Às vezes eu penso que seria melhor silenciar, e me recolher à minha insignificância, mas depois vejo que a insignificância é geral e irrestrita.
Então tenho vontade de compartilhar. (..)
Já falei por aqui sobre o esforço desmesurado que a maioria das pessoas está fazendo para não sucumbir ao descaso do mundo, que é um descaso total, um abandono total de toda a humanidade em seus hedonismos e empoderamentos artificiosos. (...)
Tenho consciência das minhas limitações e absoluta irrelevância.
Sou uma peça de museu, e de um museu abandonado, incendiado e esquecido.
No Brasil de hoje as prioridades do "coletivo" são antípodas a tudo o que mais me fascina.
Fiz um disco progressivo, amoroso, com toques evidentes de barroco, buscando a beleza e a profundidade em cada verso, cada frase melódica, e fiz o que eu sempre soube fazer, dando o melhor de mim num tempo de muitas dificuldades e desafios. Fiz tudo dentro do que de melhor eu sou capaz, mas sou antiquado e minhas ideias pertencem a um ordenamento anacrônico. (...)
Fui muito bem recebido nos âmbitos que nos dizem respeito, no nosso ambiente estético, do meu público, de quem gosta das coisas que a gente faz, e tenho profunda gratidão pela fidelização das pessoas.
Mas sinto que não tenho mais muita utilidade de uma maneira geral...
O mundo atual está 'virando as páginas' muito rápido, e não só para nós, buscadores de músicas e letras bonitas, mas está sendo cruel até mesmo para com os seus "fenômenos", com as suas prioridades e hypes "da crista das ondas".
Mundo de memória curta, mundo de manadas, enxames, matilhas, cardumes predatórios, nuvens de insetos em revoada desesperada por aniquilação. (...)
O fato é que a gente vai se percebendo silenciado em nosso tímido cantinho cheio de caprichos e cuidados, pelo ruído fragoroso de um mundo descuidado, bizarro de aberrações e de gostos tão desconcertantes... (...)
Como diria o (bom) poeta... Que fim levaram todas as flores?"