Se este fosse um ano normal, hoje estaríamos publicando aqui as seleções dos críticos de vários Estados sobre os melhores álbuns de 2020. Faço isso desde a década de 1980. Como o corona e o governo subverteram tudo, a coisa fica diferente. Não que não tenhamos muitos bons discos lançados; a questão é que houve um desarranjo no sistema/esquema/mercado, desregulando parâmetros de uma forma geral.
Cheguei a propor aos meus amigos um balanço diferente, mas parte deles não estava estimulada. O carioca Tárik de Souza, por exemplo, ícone da crítica, em ação desde os anos 1960, ponderou: “Com a atomização da música pelo devastador streaming, mais a substituição dos shows presenciais por miríades de ‘lives’, me confesso incapaz de fazer um resumo musical decente do ano”.
Já o mineiro Kiko Ferreira se mostra menos pessimista: “Apesar de ser dominante, a lei que sentencia todo artista a lançar singles, e não álbuns, começa a ser flexibilizada. Veteranos como Bob Dylan, Neil Young, Paul McCartney, Bruce Springsteen, Fiona Apple e Patti Smith, entre outros, lançaram álbuns consistentes, com conceitos bem resolvidos e música de qualidade”.
Tárik e Kiko são tradicionais presenças no meu balanço, ao lado de Antônio Carlos Miguel (Rio), Carlos Calado (SP), Irlam Rocha Lima (Brasília), José Telles (Recife), mais os nossos Paulo Moreira e Roger Lerina. Mas como Tárik, também ando contrafeito com a “nova normalidade” do panorama da música. E a imposição dos singles, citada por Kiko e potencializada pela pandemia, desestabiliza minha forma de ver e sentir a música.
Sou um cara do LP, do CD, do álbum físico, com seus encartes e epidermes. Resisti a escrever sobre álbuns apenas digitais. Mas na pandemia me dobrei, os dois formatos têm que ser considerados. É inevitável. Continuarão a sair LPs (um dono de sebo de discos me disse esta semana que é o que seus clientes querem), CDs e, mais e mais, álbuns digitais.
Por outro lado, meus ouvidos e meu prazer estético não têm queixas de 2020. Ouvi belos discos de Marcelo Delacroix, Sérgio Rojas, Esquimós, Ney Matogrosso, Mauro Moraes, Zélia Duncan, James Liberato, Bebeto Alves, Marco Gottinari, Delicatessen, Vince Velvet, Maria Rita Stumpf, Gadhyego Carraro, Edson Natale, Luana Fernandes, Luiz Martins, Herbert Vianna, Rodrigo Nassif, Tagua Tagua, Juliana Cortes... E, entre outros, os dois que estão aqui abaixo.
Boas festas. Espero um ano melhor para todos nós.
Antena
UM SARAU NO PAMPA GAÚCHO, de Marcelo Cazarré
Você põe o disco, fecha os olhos e pronto: está em um sarau no século 19. Marcelo Cazarré, doutor em piano pela UFRGS e professor da UFPel, faz um resumo de suas pesquisas de época, com 26 peças pianísticas de salão gravadas pela primeira vez. São mazurcas, polcas, schottisches, valsas, tangos e havaneiras de pianistas-compositores gaúchos e visitantes. Músicos que o tempo foi deixando às sombras, trazidos agora de partituras raras, garimpadas em museus e bibliotecas.
No encarte do CD, Márcio Souza, também professor da UFPel, reúne pequenas biografias desses artistas, nomes como Domingos Moreira Porto, Leopoldina Lewes, Francisco Santini e Álvaro Reis. Os títulos das peças são sugestivos: Recordação de Tramandahy, Viva a Sogra!... Cazarré é brilhante na evocação dos climas pianeiros. Dá uma saudade daqueles tempos que não vivemos! Produção musical de Olinda Allessandrini.
REGISTRO AUTORAL, de Belardes Rerrago/Ivanov Basso
Ivanov é violonista reconhecido no ambiente da música de concerto do RS. Formado pela UFSM e professor da UFPel, começou a compor sem alarde, usando o alter ego de Belardes Rerrago. “Ele é meu amigo e companheiro nas horas dedicadas às composições. Conversa comigo e eu apenas escrevo as notas”, conta no encarte.
Mas é possível que a partir de Registro Autoral, seu primeiro disco, Ivanov vá perder espaço para Belardes: como violonista, só aparece na última faixa, Visita, em duo com a flauta de Raul D’Ávila. Nas demais, a evidência é seu talento e inspiração como compositor. Em Quatro Peças, dialogam o violino de Tiago Sabino Ribas e o violão de Alexandre Straub Gomes; já Três Prelúdios tem “apenas” o violão sete cordas de Maurício Marques. No encarte, Márcio de Souza destaca a fusão do regional, o tradicional e o moderno na música de Ivanov. É um autor gaúcho que emerge para maiores atenções e audiências.
- CDs à venda (R$ 35) em notaazul.lojaintegrada.com.br. Disponíveis também nas plataformas digitais.