"Não é preciso que a bondade se mostre; mas sim que se deixe ver." (Platão)
O chamado que recebi da emergência cirúrgica da velha Santa Casa dos anos 1980 se deveu à presença, na admissão, de uma velhinha encurvada, de pelo menos 75 anos, com grande dificuldade para caminhar. Vinha apoiada no braço de uma mulher mais jovem, com aspecto igualmente humilde, e foi acomodada numa cadeira com a queixa de dor no tórax, tão forte que lhe oprimia a respiração.
Como a paciente tinha muita dificuldade de responder as perguntas iniciais, dirigi o interrogatório para a acompanhante que, logo percebi, sabia muito pouco da real condição da paciente.
A entrevista não avançava porque a socorrista era muito econômica nas palavras, apesar da minha insistência.
A entrevista não avançava porque a socorrista era muito econômica nas palavras, apesar da minha insistência.
— A senhora é filha dela?
— Não, não sou.
— Parente, amiga, vizinha?
— Nada disso.
Não sei bem porque, mas aquele diálogo travado provocou uma certa irritação que não consegui dissimular.
— Por favor, a senhora me ajude a entender, porque só assim vou conseguir ajudar!
E tudo piorou com a resposta:
— Eu não quero que o senhor fique bravo, mas o senhor só me pergunta coisas que eu não sei responder.
— Pelo menos a senhora sabe o nome dela, ou nem isso?
— Acho que é Nelsi, mas não tenho certeza, porque quando eu perguntei ela tava gemendo muito.
Com a situação cada vez mais complicada, a paciência terminou:
— Mas quem é a senhora, afinal, que é a acompanhante de alguém, mas não tem a menor noção de quem seja?
— Ah, seu doutor, eu sou a Marinalva, mas todo mundo me chamar da Mari. No começo eu não gostava, mas agora que me acostumei, até gosto.
— Muito bem, dona Marinalva, vamos começar de novo. Qual é a sua relação com esta vozinha que a senhora acha que é a Nelsi, mas pode ser que não seja?
— Assim, relação relação mesmo, a gente não tinha, até que lá na Estação Rodoviária ela me pediu que a ajudasse a encontrar um lugar pra sentar, porque ela não aguentava mais ficar em pé de tanta dor nas costas. Achamos um banco e aí fiquei conversando com ela até que a dor passou. O que ela me contou é que tinha vindo de Caçapava, pra encontrar o filho, que não sei por que não apareceu. Bom, eu não ia deixar a coitada lá, sozinha, porque fiquei meio que com pena dela, porque isso de filho não aparecer judia da gente, né, doutor? Não sei quanto tempo passou, acho que umas três ou quatro horas, quanto a dor voltou, e achei que o melhor era trazer ela aqui pra Santa Casa, porque alguém ia cuidar dela. Eu não queria que o senhor se chateasse, mas se pudesse dar um jeito nessa dor dela, eu ficava meio que bem agradecida!
Senti vontade de abraçar a Marinalva, mas parei no elogio, quando percebi, constrangido, minha dificuldade de aceitar que alguém se dispusesse a socorrer um desconhecido pelo simples prazer de ajudar, e resolvi remendar:
— Que bonito o seu gesto. Se vê que a senhora é gente boa, e o mundo precisa de mais pessoas assim.
— Eu não sou essas coisas que o senhor falou. É só que eu morro de pena quando vejo uma pessoa velha abandonada.