As pessoas são tão diferentes que, ao envelhecer, descobrimos que não há modelos comportamentais antecipáveis ou minimamente previsíveis. E justo na fase madura, quando conscientemente, ou não, começamos a confiar que de comportamento humano somos entendidos, mais estamos expostos a surpresas arrasadoras, a desafiar a nossa pretensiosa condição de oráculos da modernidade.
O Julio era um empresário bem sucedido, se isso significar que ele soube construir uma grande fortuna. Na primeira consulta, não andamos bem, porque ele estava visivelmente contrariado de estar ali, trazido pela mulher para que fizesse um check-up, porque fumara a vida toda. Só começamos a descobrir algumas identidades quando dias depois, ao entrar no consultório, ele ouviu, na música ambiente, Ne me Quitte Pas, na maravilhosa versão da Maysa, e pareceu tão magnetizado, que a consulta só começou, de fato, depois dos três minutos e 11 segundos que dura a tal gravação.
Agora que tomei a decisão mais importante e difícil da minha vida, entenderás que estes quatro meses não significaram nenhuma perda de tempo, só o amadurecimento de uma ideia!"
A partir daí, instalou-se a rotina afetiva de garimpar todas as paixões recíprocas, o que sinaliza que encontramos um amigo potencial, e precisamos confirmar as evidências. Com essa base diferenciada, nossa relação migrou para um nível superior, onde imperava a disputa, acirrada e sadia, pela maior expressão de bom gosto – musical, literário ou o que fosse. Como pouco conhecia da sua família, porque passou a vir ao consultório sozinho, não pareceu nem um pouco estranho quando, cinco anos depois, ao agendar um horário, deixou um recado debochado com a secretária: "Diga pro teu chefe que desta vez é sobre uma coisa séria".
Numa radiografia de tórax, que fazia parte do protocolo que ele impunha anualmente a si e aos executivos da sua empresa, aparecera um tumor de uns quatro centímetros, sem sinais grosseiros de disseminação. Ouviu em silêncio e com ar de enfaro minhas explicações sobre os exames que teríamos de fazer, inclusive de atualização dos achados pulmonares porque já se passavam quatro meses da tomografia reveladora da lesão. Tentei mantê-lo animado, porque a chance de cura era bastante boa, e então ele me interrompeu:
— Deves estar surpreso pela demora em te procurar, mas, na verdade, quando recebi este laudo do radiologista varei noites sem saber o que fazer, com os olhos fechados para que minha mulher pensasse que dormia. Agora que tomei a decisão mais importante e difícil da minha vida, entenderás que estes quatro meses não significaram nenhuma perda de tempo, só o amadurecimento de uma ideia!
Selecionou uma imagem ampliada da tomografia que mostrava a lesão e acelerou as palavras como quem quer se livrar logo do peso da decisão:
— Se este filho da mãe pretendeu me assustar, errou o bote, ele veio para me salvar!
Nova pausa:
— Li muito sobre câncer de pulmão, confio nele, e sei que ele está pronto para cumprir seu papel, mas infelizmente eu dependo da tua ajuda. Eu quero muito morrer, mas não suportaria que meus filhos soubessem disso. Então, tens que me ajudar, dizendo que o meu caso não tem solução. Eles confiam cegamente em ti, e isso ficará como um segredo, o maior segredo entre dois amigos de verdade!
A maior tristeza é a que veste convicção, e esta me nocauteou. Treinado para sempre escolher a vida, não respondi. Calado, foi como se lhe dissesse: "Não me dê sua mão porque eu não saberia o que fazer com ela!".
Ele deixou o fone de casa e saiu. Cinco meses depois, soube que tinha morrido, e o obituário dava conta de não ter resistido a um infarto fulminante. Todos comentaram com surpresa a sua morte, "porque afinal ele era um homem que nunca esteve doente".
Diante da minha vã pretensão de ajudar, o coração soubera mais como fazer. E sem transferir a culpa para ninguém.