—Mas, afinal, o senhor crê em Deus ou não? Pergunto isso porque tenho dúvidas se me entregaria a um ateu!
Havia muita ansiedade pela minha resposta, e então, querendo entender melhor a priorização desta certeza, retribui perguntando:
— O senhor não confia que Deus, impressionado com o tamanho da sua fé, guiará minhas mãos na melhor direção possível, considerando que é a sua vida que estará em jogo?
Ele ficou um longo tempo em silêncio constrangido, até admitir:
— Pois é, não tinha pensado nisso, mas talvez uma fezinha extra ajudasse!
Pronto, ficamos resolvidos. Não me importava mais a crença ou a falta dela. Não se pode desperdiçar com penduricalhos o afeto de um tipo dono dessa transparência.
A atividade médica ensina a diferença da resignação diante do sofrimento. E marcadamente, na sofreguidão da perda, o papel que a crença na vida depois da morte desempenha como consolo na aridez espiritual do luto.
Solidificada a relação, admitimos que, honestamente, ninguém tem toda a fé que o mais religioso apregoa, nem descrê tão completamente quanto o mais incréu alardeia. E concluímos que essas posições mais radicais, com a arrogância da certeza absoluta, são uma exclusividade da saúde perfeita. Qualquer ameaça, por sutil que seja, desencadeia um estímulo sacro que nos põe ajoelhados e de mãos postas, tornando-nos irreconhecíveis.
A possibilidade sempre assombrosa da morte tem este poder de exaurir nossas reservas de coragem e galhardia. Desnudos de qualquer brio fantasioso, nos socorremos de todas as âncoras afetivas disponíveis. E, nesse sentidos a fé religiosa é inexcedível como consolo para os devotos e como provocação para os infiéis, porque esses sempre se sentem diminuídos diante de uma fé inabalável. Mesmo os que não creem, mas trabalham com o sofrimento alheio, são envolvidos pelo manto da esperança que emana da fé, e que por ser assim, quase se apalpa, ainda que não se explique.
Por isso, o ser humano em crise com a descoberta de sua fragilidade depende das tais estacas de sustentação e, assim, nada como a religião, por ser uma entidade ao alcance de todos, sem discriminações, nem teste de aptidão dos candidatos, e a custo zero. Uma espécie de pronto-socorro da alma. Mesmo aos não religiosos, a atividade médica ensina a diferença da resignação diante do sofrimento. E marcadamente, na sofreguidão da perda, o papel que a crença na vida depois da morte desempenha como consolo na aridez espiritual do luto. De qualquer modo, discutir crença religiosa segue sendo uma tarefa ingrata, pois nada atrapalha mais a relação entre pessoas com níveis diferentes de fé do que a radicalização, esta geradora de conflitos milenares, responsáveis por mais mortes, ao longo da história, do que todas as epidemias reunidas.
Aos ocidentais, choca que em outras civilizações preservem-se ritos com algumas punições grotescas, ainda que tenhamos de admitir que o preceito de amputar a mão de quem rouba seja um indiscutível estímulo ao trabalho honesto.
Aos agnósticos, sempre chateou a figura de um Deus que transferiu para a Igreja o papel de modelador do comportamento social, através do castigo ao pecado, porque a gente queria tanto que Ele fosse só um grande queridão.
Talvez por isso, tenham me impressionado tanto as tétricas figuras do Juízo Final, que Aldo Locatelli pintou, com maestria, no teto da Catedral de São Pelegrino, situada a duas quadras da casa dos meus avós, em Caxias do Sul, onde rezei com medo em férias da minha infância, quando eu ainda nem sabia o que era o pecado.