Toda gestão é complicada, o que justifica a valorização crescente dos melhores profissionais, procedentes das melhores escolas. E se tem uma área em que esta tarefa exige, como em nenhuma outra, habilidade, sutileza e inteligência emocional, é a da saúde pública. Como quem transita em um campo minado, há que orientar sem que pareça opressão, instruir sem pretender lavagem cerebral e alertar sem permitir que o medo multiplique o risco da doença.
Doutor Knock (Jules Romains, 1923) é a história de um ex-bandido, travestido de médico, que se candidata a substituto durante as férias do velho médico da aldeia de Saint-Maurice, nos Alpes franceses. Foi alertado de que teria pouco trabalho porque a população era a mais saudável do mundo, mas prometeu que, quando o veterano voltasse das férias, em cada casa da aldeia haveria uma lâmpada de cabeceira acesa, a mostrar que alguém cuidava de alguém, doente. Quando os primeiros ingênuos clientes voltaram das consultas agendadas por mera curiosidade, espalhou-se o pânico na cidade com a notícia de que o doutor novo descobria doenças insuspeitadas e o quanto eram graves as moléstias que o antigo médico subestimara. A história tem um final previsível, porque afinal o bem sempre vence e o vigarista acaba desmascarado por um antigo parceiro de crimes em passagem pela aldeia.
É quase impossível evitar que as informações sejam mal entendidas e, se não bastasse, ainda sofram subversões.
Mais de um século depois, a mensagem permanece intacta, confirmando que o medo, que tantas vezes nos protege, pode se transformar ele próprio numa doença grave, rapidamente alastrável como uma pandemia, igualmente sem tratamento e sem perspectiva de vacina, porque ele está incrustado na nossa natureza, frágil e sugestionável.
E porque é assim que somos, as recomendações oficiais precisam levar em conta o quanto o nível de entendimento da população é precário. É quase impossível evitar que as informações sejam mal entendidas e, se não bastasse, ainda sofram subversões quando são levadas de boca em boca, se expondo a interpretações pessoais, muitas vezes marcadas pelo espírito catastrofista do mensageiro, que se esforça em exagerar porque isso lhe dá, aparentemente, mais importância.
Quando as autoridades da saúde recomendaram que as pessoas com sinais leves de gripe não corressem às emergências porque lá se exporiam ao contato com pacientes realmente doentes, estavam, sem pretender, demonizando o ambiente hospitalar.
E, com isso, fazendo com que pacientes com doenças crônicas se agravem pelo retardo do atendimento médico, e, muito grave, que cânceres curáveis percam a oportunidade pela protelação do tratamento. A ideia vigente na média da população é de que o hospital contamina, quando, na verdade, a separação das áreas correspondentes oferece aos pacientes que precisam internar uma segurança que os lugares públicos não têm.
As emergências com metade da capacidade operacional e os hospitais vazios já estão causando mortes evitáveis e que, seguramente, não constarão dos boletins televisivos, que não contabilizam esta letalidade colateral do coronavírus.