Se cada vez que “isolamento social” fosse citada na televisão uma pessoa resultasse imunizada da covid-19, a pandemia já teria sido controlada. E isso que ela, a expressão, só começou a ser usada depois que os interlocutores do Ministério da Saúde cansaram de traduzir para o povão o que queria dizer, o lockdown.
Aliás, os boletins iniciais eram mais sofisticados, porque estávamos empenhados em flatten the curve, mesmo que para isso fosse necessário o tal lockdown. E para reduzir as idas ao mercado para comprar comida, recomendava-se os pedidos on delivery. Não durou uma semana e o nível despencou, segundo um técnico em saúde:
– Vamo lá, gente, o álcool é pra passá na mão, não pode bebê, cada um deixe de frescura e prepare a sua comida, e se amontuá para fazê fofoca, a curva vai empiná, e aí ferrou, de vez!
A guerra, obrigando os soldados a usar uniforme, era um adversário mais digno, porque todos sabiam que cara ele tinha.
Mas, falando sério, quando se vê o efeito na vida das pessoas de uma parada forçada de três semanas, se entende, melhor do que nunca, o quanto a nossa rotina, por nos tornar mais previsíveis, era acalentadora e generosa, permitindo-nos que nos queixássemos dela sem revide, quando nem sonhávamos que um dia tê-la de volta passaria a ser o apelo máximo de uma geração temerosa desse inimigo que, por ser invisível, assusta mais. Um veterano ianque confessou que a guerra, obrigando os soldados a usar uniforme, era um adversário mais digno, porque todos sabiam que cara ele tinha.
No momento em que ninguém suporta mais o abraço virtual, estamos tentando, sem nenhuma experiência prévia, construir uma nova rotina, que nos devolva a sensação de paz, e que esta pareça minimamente sincera.
Ninguém aguenta mais os nossos amigos, com suas caras deformadas no Skype ou no Facetime, com o áudio sempre dissociado da imagem por conta do tal delay, aquele que deixa os correspondentes com ar abobado enquanto não chega a pergunta do âncora do noticiário. Nem a promessa que daqui a pouco a gente se vê por aí!
Duas coisas têm contribuído para aumentar a ansiedade do confinado, que na primeira quinzena tem rosnado para o espelho com chance crescente de atacá-lo na segunda: a repetição de que o pior ainda está por vir (isso ajuda?) e o anúncio de que, neste momento, é impossível prever quando tudo vai terminar. Isso decorre de uma verdade bem conhecida: a esperança se alimenta de prazos. A prisão numa solitária sem direito a luz natural, durante um mês, como punição, seria uma barbada, porque contaríamos os dias, e a contagem regressiva nos manteria animados.
Mas como as pessoas, por santa ventura, são diferentes, sobrevivem os criativos, que, preservando o bom humor, mantêm a moral da tropa numa espécie de platô, simulando aquela curva que o ministro tem mostrado com a mão, como modelo de ambição para este abril despedaçado. Selecionei uns memes capazes de colocar algum riso na cara de quem perdeu o hábito, depois que até o botequim fechou:
“De tanto conversar com a minha mulher, descobri que ela é uma boa pessoa.”
“Já fiz muita coisa escondido, mas trabalhar é a primeira vez.”
“Se você achar que está começando a entender sua esposa, não se assuste. Isto é a Síndrome de Estocolmo.”
“Quando isso terminar, quero ficar uns 15 dias sem aparecer em casa.”
E a minha preferida: o maridão sentado, comendo, e a mulher pergunta: “Tá boa a comida, amor?” O precipitado: “Tá sem sal!”. “Tá sem o quê?!?” E ele, no desespero: “Tá sensalcional!”.
Que este senso de humor nos preserve na espera por novos velhos tempos em que poderemos, outra vez, recuperar as mãos como instrumentos de afeto, e não mais como conchas para o álcool gel.