Até os egoístas e os que não estão nem aí, se tivessem oportunidade e tempo de descobrir a euforia de ajudar, se revelariam. Alguns tolos, infelizmente, se consideram autossuficientes, mas são minoritários, além de incuráveis.
Estar exposto numa emergência e receber um paciente que teme estar com o coronavírus é conviver, mais do que com a ameaça do vírus, com um duplo medo do paciente: o de confirmar o diagnóstico e o de não ser aceito para tratamento, porque muitos são mesmo mandados para casa, diante de um quadro que o médico tem condições técnicas de reconhecer como leve ou moderado, sem vantagem de internação, mas que o paciente nunca entenderá assim, porque, ora, a doença é dele. É quando se descobre que, medo por medo, o do abandono é maior.
Sai paciente e entra paciente, o ritual se repete, confirmando que a maioria da população ainda não entendeu que, com sintomas leves de uma virose qualquer, correr para uma emergência, onde estão pessoas aglomeradas, algumas delas, de fato, doentes, é só aumentar o risco de realmente adoecer.
Apenas a gratificação de fazer o bem é capaz de gerar força e coragem para manter alguém atuante e disponível quando mais fácil seria renunciar.
Por outro lado, quem envelheceu trabalhando como médico não consegue disfarçar uma chispa de orgulho ao ver aquela garotada que até a semana passada, pressionada pelo mercado claudicante e desvalorizada pelas políticas de saúde, incertas e depreciadoras, ainda estava insegura sobre seu futuro profissional; agora, colocada na linha de frente, descobriu a maravilha de ser médico e, não importa quanto seja falso, sentir-se mais forte do que o perigo.
O encanto e o deslumbramento de ajudar, definidos há muito como a mais primitiva expressão de civilidade, se revela, como nunca, em momentos de crise.
Os tipos que ao longo da história dedicaram suas vidas ao exercício da solidariedade marcaram suas trajetórias pela associação de generosidade e empatia, com aversão total a qualquer forma de popularidade ou ostentação.
A melhor prova da intensidade da energia que os impulsiona sempre foi o aumento da determinação quando foram colocados em situação de risco para si. Só a gratificação de fazer o bem é capaz de gerar força e coragem para manter alguém atuante e disponível quando mais fácil seria renunciar. Então, por ora, queremos apenas cuidar de quem realmente precisa, e do nosso jeito, discreto, compenetrado e silencioso. E, por favor, esqueçam os discursos de heroísmo, não somos heróis, somos profissionais, com avós, pais, filhos e netos, e precisamos, como todos, continuar vivos para cuidar deles nos intervalos do nosso trabalho.
E depois que tudo passar e o medo tiver escorrido, e o abraço ressuscitar, será recomendável que alguns tipos sigam usando máscaras, para esconder a cara da vergonha de terem depreciado esses abnegados capazes de resgatar todas as vidas possíveis, porque é só isso que sabemos fazer. E apesar de termos sido comparados ao sal (“branco, barato e existente em qualquer lugar”), vamos seguir adiante, sem bater boca com a dialética da retroescavadeira.
Só confiamos que os envolvidos não entendam este recado como predisposição ao esquecimento. Porque, podem crer, este arquivo é implacável.
P.S.: eu gostava da Mariana Kalil, nos gostávamos, muito. A inteligência debochada, o senso de humor, a espontaneidade de gostar de gente. A sensação de peso desses tempos difíceis só vai agravar com a falta da leveza do sorriso da Mariana.