A Gente Vai Embora, este vídeo do Sérgio Cursino, um radialista experiente, que viralizou na internet na virada do ano, incluiu alguns clichês inevitáveis, mas impactou pelo uso de palavras simples e didáticas. As frases “o cão que amamos será entregue a outro dono e se afeiçoará a ele” e “as coisas que nem emprestávamos serão doadas ou jogadas fora”, porque a gente vai embora, revelam a fragilidade das nossas âncoras afetivas e a dificuldade que temos em assumi-la.
A sensação final é de que somos essenciais apenas para nós mesmos, mas um pouco menos importantes para o microcosmo que nos rodeia e completamente substituíveis (e, tantas vezes, com vantagem!) para o resto da mundo, que não tem nada com isso.
A morte, com seus múltiplos eufemismos, sempre representou o protótipo mais completo e definitivo de irmos embora, mas a longevidade, tão festejada, tem produzido outros modelos, não necessariamente menos dolorosos.
A Maria Marta tinha uns 60 anos quando foi operada, e guardei dela uma lembrança carinhosa e bem-humorada. Mais de 20 anos depois, marcou uma consulta, que se iniciou com uma frase desconcertante:
— Doutor, eu perdi meu marido e preciso muito que o senhor me ajude a encontrá-lo.
Surpreendido com a abordagem, muitas ideias percorreram minha cabeça: “Será que o marido morreu e ela quer que eu a ajude a morrer, para reencontrá-lo? Mas que louca! Não pode ser, não com esta serenidade!”. Ou: “O Rosalvo saiu de casa e desapareceu? Não deve ser, os velhos odeiam sair do lugar! E, além disso, dar no pé é coisa pra quem tem ânimo e tempo pra recomeçar!”. Desconfio que a maioria dos muitos velhos que conheci morreria de cansaço antecipado, só de pensar em fazer tudo outra vez, mesmo que tivessem certeza de que fariam melhor.
Difícil consolar quem descobriu que a morte sem cadáver é a mais dolorosa, porque impede a roda de girar.
Para interromper a perplexidade estampada na minha cara, ela atalhou:
— E o mais impressionante é que apesar dos 83 anos, ele continua o mesmo homem forte e bonito que eu sempre adorei! Na minha lembrança, tudo começou a sair dos trilhos há dois Natais, quando ele cumprimentou formalmente cada neto, sem abraçar nenhum deles. Naquele momento, eu soube que tinha alguma coisa muito errada, aquele não era mais o meu Rosalvo. Consultamos especialistas, que solicitaram exames de imagem e concluíram que os achados eram compatíveis com a idade. Então, eu decidi ouvi-lo, porque se eles estiverem certos, preciso da sua ajuda: o que vou fazer com este velho, que se parece tanto com o meu Rosalvo, mas não tem nada daquele homem maravilhoso, que amei tanto, e com quem me habituei a dormir de mãos dadas nos últimos 63 anos?
Difícil consolar quem descobriu que a morte sem cadáver é a mais dolorosa, porque impede a roda de girar.